E, de repente, do meio dos oficiais imóveis e tensos, saltaram dois agentes da contra-espionagem, atravessando o quarto em dois pulos, agarrando-me com as quatro mãos, a estrela do boné, os galões, o cinturão da montanha, e gritando em tom dramático: – você está preso! (Soljenítsin, 197, p. 29).
O barulho da cela que se fecha, o grunhido das chaves trancado as portas, as poucas palavras do vigilante, a desumanização, o reduzir a frangalhos, a notícia, o mundo que desaba, as tantas páginas lidas que agora pouco serviam, solidão. Ressignificação completamente nova da vida, os valores humanos se relativizam e se tornam maleáveis, vazios. Você está preso. As estatísticas impressionam. A quantidade de pessoas que passaram pelo sistema presidiário soviético pode ser comparada a populações de diversos países - a garra do estado soviético era faminta. Lewin, em o século soviético, apresenta um apanhado do número de presos por razões políticas. Entre 1921 e a primeira metade do ano de 1953, as cifras apontam 4.060.306 pessoas condenadas, sendo que 2.634.397 a campos, colônias ou prisões de trabalho forçado e, desse montante, 799.455 à pena capital (2007, p. 482).
Os artigos em que o Código Penal russo enquadravam esses prisioneiros eram vagos e ambíguos. Aarão Reis menciona os principais: o "58" e o "35". O primeiro, que mais nos interessa, dizia respeito exatamente aos presos políticos. Os crimes de possível adequação a essa categoria eram muitos: traição, espionagem, sabotagem, terrorismo, propaganda anti-soviética, "só não caia nessa rede quem o pescador não quisesse". (1997, p. 178).
Com a necessidade de reprimir os "inimigos do povo", o governo soviético passa a custódia desses a um órgão denominado "Administração Central dos Campos" (Glavnoe Upravlenie Lagerei) - origem da sigla GULAG. Muitos e de variadas espécies, seriam transformados em grandes complexos produtivos e em depósito do "lixo soviético": "ex-prisioneiros, nações colaboracionistas, sabotadores em germe, dissidentes ativos, descontentes passivos, toda uma nova geração de presos, políticos e comuns". (Aarão Reis, 1997, p. 178) Esses prisioneiros eram levados a lugares longínquos, congelantes e sombrios, onde a ração era somente a essencial e o trabalho duríssimo - os mais indesejáveis. Mão-de-obra abundante, gratuita e de fácil substituição.
Lewin aponta alguns dos feitos realizados com o uso de trabalho prisioneiro:
Uma rede, de bom tamanho, de agencias administrativas industriais, ferrovias e hidrelétricas, mineração e empresas metalúrgicas, florestais e de desenvolvimento da região do extremo oriente (o Dal`stroi). Projetos de pesquisa e de engenharia para a produção de armas, inclusive atômicas, foram criadas em campos especiais de presos - os chamados Sharashki - com grandes especialistas, entre eles Tupolev (aviões) e Korolev (foguetes). (2007, p. 149).
À medida que a importância desse tipo de trabalho e do GULAG crescia, as contradições e as crises internas se mostravam vorazes, cancerígenas. As condições de vida eram as piores: fome, frio, execuções, ameaças e humilhações - um pântano enlameado nas taigas russas. Até quando duraria esse modelo, ao certo não se sabia, mas a sobrevivência estava ofegante. Com índices de morte tão elevados, logo não seria tão simples a reposição da mão-de-obra.
Medidas visando o enfraquecimento do modelo GULAG começam a se gestar em período ainda anterior à chegada de N. Kruchev ao poder, na primeira metade dos anos 1950. Como afirma Lewin, a "desgulaguização" foi produto prioritário de seu crescente insucesso e baixa produtividade. Foi necessário, no entanto, esperar a morte de Stalin, grande líder do regime.
Gulag na Siberia. Para o leste da região de Perm está o vasto território da Sibéria. Foto do Museu Gulag em Perm-36. |
No governo de N. Kruchev, enfim, a estrutura se desmantela. O número de detidos em campos cai de 5.223.000 em 1953 para 997.000 em 1959. E o mais espantoso, o número de contra-revolucionários decresce de 580.000 para 11.000. (Lewin, 2007, p. 198). O GULAG abre falência. Os tempos eram outros, a política também.
Com maior liberdade de expressão, vozes aumentam a força das denúncias dessa realidade. Aleksandr Soljenítsin, antigo prisioneiro do Gulag, lança um primeiro livro: Um Dia na Vida de Ivan Denisovich. Um pouco mais tarde, sua obra clássica: O Arquipélago do Gulag, narrando sua história e esboçando a coleta de entrevistas que fez com ex-presidiários. A URSS começava a abrir as cortinas para o mundo e para si própria. A vida desse prisioneiro se tornava em larga escala conhecida.
Soljenítsin conta que, ao ser preso, sua carreira militar era arruinada. Tudo que ele era se tornava apenas um passado nas lembranças – de capitão a inimigo do povo. Breves segundos dividiam dois abismos. Os primeiros meses de completo isolamento em celas apertadas, mal-cheirosas, frias, sombrias (apenas um pequeno foco de luz constante) são detalhadamente revelados. Em uma passagem de o Arquipélago do Gulag, o autor narra a felicidade de ser reincorporado a celas comuns, junto com outros detentos, depois de tanto tempo em regime solitário:
E nenhuma outra coisa você recordará pela vida afora com tanta emoção.(...) Essas pessoas compartilham com você o chão e o ardente cubo de pedra, nesses dias em que você revivia toda a sua vida sob uma luz nova. E alguma dia você se lembrará delas, como se fossem pessoas da família. (1976, p. 183)
A política soviética de correção através de trabalho era literalmente seguida. Como e em que medida se fazia isso era algo de difícil mensuração. Um poder discricionário extremo, a ferro e fogo:
Que luta é essa para nós, se quando o chefe da Lubianka entra na cela da anarquista Anna G...v (1926) ou da socialista revolucionária Kátia Olitskáia (1931) estas se recusam a pôr-se de pé à sua chegada? (e este inventa logo um castigo: privá-las de seu direito... de ir fazer as suas
necessidades fora da cela). (Aleksandr, 1976, p. 442).
Mesmo com a progressiva desativação do GULAG, a memória e a importância histórica desse passado tão vivo permanecem presentes. A tirania que sepultou tantas vidas e sonhos de pessoas inocentes ou culpadas, não pode ser negligenciada. As obras faraônicas, os inventos ímpares, todos os frutos dessa expropriação sempre carregarão o sangue e o suor de um sistema covarde e desumano. Ainda que nada seja mais humano do que a barbárie.
O universo tem tantos centros quanto os seres vivos que nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do universo. E ele desmorona quando alguém nos sussurra ao ouvido: – você está preso. (Soljenítsin, 1976, p. 15).
Cronologia
- 1917 - Triunfo da Revolução Russa
- 1918/1919 - Inicio do funcionamento de campos de trabalho forçado
- 1924/1927 - Consolidação do poder de J. Stalin
- 1930 - O termo GULAG começa a ser empregado;
- 1942 / 1943 - Índices de mortalidade no GULAG atingem níveis recordes;
- 1950 / 1951 / 1952 - Período quando o GULAG mais possui prisioneiros;
- 1953 - Morte de Stalin e ascensão de N. Kruchev
- 1956 - N. Kruchev faz o famoso discurso-secreto denunciando práticas do governo de J. Stalin
- 1954 - Grande número de anistias a presos políticos – crise do GULAG.
- 1960 - Desativação oficial do GULAG;
- 1973 - Publicação de O arquipélago do GULAG, de Aleksandr Soljenítsin;
Bibliografia
AARÃO REIS, Daniel; Uma Revolução perdida: Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 1997/2007.
APPLEBAUM, Anne. Gulag - Uma História Polêmica dos Campos de Prisioneiros Soviéticos. Rio de Janeiro. Ediouro, 2004.
BEEVOR, A. Stalingrado. O Cerco Fatal. Rio de Janeiro: Record, 2002.
LEWIN, Moshe; O século soviético. Tradução de Silva Costa. Rio de Janeiro: Record, 2007.
SOLJENÍTSIN, Aleksandr. Arquipélago Gulag. Tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó
e José A. Seabra. Rio de janeiro, Biblioteca do exército, 1976.
Autor do texto: Bernardo Augusto de Moura Machado.
Autor do texto: Bernardo Augusto de Moura Machado.
Li os dois livros de Soljenítsin-- Um Dia na Vida de Ivan Denisovich--O Arquipélago do Gulag-nos anos 60 deu muito que falar aqui na europa, pois havia os ditos pensadores que pensavam que a URSS, era um paraiso, quando este era mais ou menos equivalente a tudo que era o nazismo. É sem duvida dois grandes obras vividas por alguem que eu vi na televisão ainda vivo na decada de 80. Militar-prisioneiro-escritor que tanto sofreu nas amarras do maldito comunismo
ResponderExcluirLegal ver esse artigo aqui. Eu que o escrevi... Abs
ResponderExcluirBom dia Bernardo. Tem 10 anos que postei ele já. Como o tempo voa. Parabéns pelo texto.
Excluir