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domingo, 4 de abril de 2010

A ferrovia da morte


Stanley Willner e seu livro A Ferrovia da Morte

O relato de Stanley Willner, sobrevivente de um cargueiro americano afundando e prisioneiro de guerra dos japoneses na Tailândia

Quando a guerra começou, eu estava em um navio em Portugal. O meu retorno aos EUA foi feito pelo M.S. Sawokla, como terceiro imediato. O Sawokla era um transporte militar, operado pela Linha Americana de Exportação. Uma vez em Nova York, me reportei ao quartel-general da marinha e disseram-me para permanecer no Sawokla, pois ele seria carregado com suprimentos militares que eram urgentemente necessários no Golfo Persa.

O Sawokla navegou sem qualquer incidente até o destino. Estávamos todos agradecidos por estarmos em um navio que não havia sido torpedeado em direção ao seu destino. Na viagem de retorno, carregávamos uns poucos soldados doentes e uma carga de juta e outros itens de tempos de guerra.

Era novembro e estávamos no Oceano Índico, umas 400 milhas a leste de Madagascar, quando o Sawokla foi atingido, torpedeado e afundado pelo incursor alemão "Michel". Eu era o oficial de vigília naquela noite. O tempo estava encoberto e o mar agitado quando vislumbrei um objeto no horizonte. Apertei a campainha para a cabine do capitão, ouvi sua porta batendo e a próxima coisa de que me lembro era estar boiando na água em um destroço do navio. Estava escuro como breu. Mais tarde eu saberia que era o único dos que estavam de vigília na noite que haviam sobrevivido ao canhoneio. A primeira salva atingiu a ponte e a sala de rádio. A tripulação do incursor alemão me recolheu da água. Eles me disseram que eu estivera boiando por quatro a cinco horas.

O Sawokla explodiu em um clarão e afundou completamente em menos de sete minutos, disse a tripulação do navio alemão. O incursor possuía canhões de 6, 7 e 8 polegadas, além de seis tubos de torpedo, três a bombordo e três a estibordo, mais um hidravião, duas lanchas torpedeiras e cargas de profundidade.

No dia seguinte, o "Michel" enviou seu hidravião e as lanchas torpedeiras para procurar por quaisquer sobreviventes do Sawokla. Nenhum traço do navio ou dos sobreviventes foi encontrado por aliados e a sua tripulação foi considerada legalmente morta. Eu ainda possuo a minha certidão de óbito, emitida pelo Departamento de Marinha, como lembrança. Todos os meus pagamentos cessaram quando fui considerado morto. O governo passou a emitir somente pequenos depósitos a título de pensão.

Os sobreviventes receberam bons cuidados médicos se os ferimentos que os acometiam houvessem sido causados somente pelo ataque ao Sawokla. Eu estava gravemente ferido e fui operado algumas vezes. Durante minha captura e reabilitação abordo do Michel, dois outros navios foram afundados no que me pareceu um período de 90 dias. Havia somente uns 35 sobreviventes dos três navios no total.

Observamos que as antenas do Michel eram muito maiores que as nossas. Os vigias usavam binóculos gigantescos - de 60 a 90 centímetros de comprimento e os turnos eram trocados a cada 15 minutos. A tripulação do incursor nos contou que o Sawokla foi localizado no fim da tarde anterior ao seu afundamento. O Michel o seguiu até o cair da noite, quando então o afundou.

Esboço de um prisioneiro feito no próprio acampamento
Em Cingapura, os alemães nos entregaram aos japoneses. No caminho a nosso cativeiro, passamos pela praça Raffles e vimos vários corpos nus e decompostos de mulheres. Nossos captores nos disseram que este era um aviso às demais mulheres para que não se recusassem a dormir com os oficiais japoneses. Fomos então levados à prisão de Changi, nos subúrbios de Cingapura. Esta prisão era de segurança máxima e foi construída para conter uns 800 internos de alta periculosidade, no entanto os japoneses amontoaram 10.000 prisioneiros de guerra entre seus muros. Felizmente nós fomos colocados nas barracas do lado de fora.

Durante a minha primeira chamada em Changi, o intérprete britânico perguntou se tínhamos alguma dúvida. Eu o entreguei uma carta do médico alemão que me tratara abordo do Michel. O intérprete a passou para o sargento japonês que a rasgou e me acertou com a coronha do fuzil. Neste momento percebi que passaríamos por maus bocados.

Olhando para trás, o tempo que passamos em Changi não foi de todo ruim. Os britânicos, australianos, holandeses e americanos que lá estavam possuíam seus setores, suas próprias vestimentas, utensílios, etc. Entretanto, a comida era escassa, embora a brutalidade fosse moderada. Os prisioneiros americanos consistiam, em sua maioria, da 131ª Unidade de Artilharia do Texas, que rendera em Cingapura, alguns sobreviventes do cruzador Houston, uns poucos pilotos que haviam sido abatidos sobre as linhas japonesas e os sobreviventes do Sawokla e dois outros navios. Os sobreviventes da 131ª eram conhecidos como "o batalhão perdido".

De Changi, eu fui colocado em um grupo de trabalho de oficiais, somando uns 3.000 homens, chamado "Força H". A "Força H" consistia de britânicos, australianos e holandeses e somente dez americanos. Foi então que o rude despertar começou. Deixamos Cingapura em uns pequenos vagões de metal cobertos. Os prisioneiros eram amontoados como sardinhas de pé. Se alguém desmaiasse por causa do calor ou de doença, ele não podia cair, permanecia de pé. Depois de vários dias, os vagões tinham um odor indescritível e nauseante.

Já na Tailândia, fomos obrigados a sair do trem e andar umas 50 milhas até o rio Kwai. Pelos próximos dois anos, eu trabalhei na ferrovia da morte. Eu até mesmo trabalhei na construção da infame "ponte sobre o rio Kwai". A ferrovia de 150 milhas que passava sobre o Kwai era conhecida como "Rodovia da Morte" pelos 150.000 prisioneiros de guerra e os trabalhadores nativos (a maioria desse número) que morreram durante a sua construção.

Esboço de um prisioneiro sobre a rotina do cativeiro


Não havia qualquer suprimento médico. Éramos alimentados com uma dieta de fome: um punhado de arroz por dia, uma sopa aguada algumas vezes por semana e uma garrafa de água por dia. A despeito de nossas condições físicas ou mentais, éramos forçados a trabalhar na ferrovia. Um oficial médico britânico estava freqüentemente no campo, embora seus conselhos fossem sempre ignorados pelo sargento japonês que selecionava os grupos de trabalho - pegando todos apesar do estado ou doença.

É impossível descrever as condições; trabalhávamos pelo menos 14 horas por dia, 7 dias por semana, sempre sob os olhares de guardas japoneses ou coreanos. Se você estava doente ou não pudesse trabalhar por qualquer motivo, era espancado até voltar ao trabalho ou desmaiar. Marchávamos de posição para posição através da selva virgem. Quando a próxima localização era alcançada, tínhamos que limpar a selva e construir o acampamento. Esse procedimento foi seguido até que a ferrovia fosse finalizada. Éramos obrigados a dormir ao relento ou improvisar qualquer coisa que pudéssemos aproveitar da selva.

Ponte sobre o rio Kwai, que ainda mantém os arcos da estrutura original
Os poucos sobreviventes do Sawokla, incluindo eu mesmo, não tinha calçados, roupas ou utensílios. Meu pé ficou tão duro e áspero que acho que poderia andar sobre carvão em brasa. A única roupa que tinha sobre meu corpo era uma bermuda que me foi dada por um australiano.

Os campos eram sempre infestados de insetos. Se fossemos capazes de pegar alguns desses, eles eram comidos junto com o arroz.

O trabalho consistia de limpar a selva, levantar postes, descarregar chatas e construir a ferrovia - sempre sob supervisão de um japonês com um bastão de bambu que era utilizado a seu bel prazer. A doença era uma constante. Em um dos acampamentos, a cólera matou 1.500 de 1.600 prisioneiros em uns poucos dias. O calor era intolerável e a garrafa de água fervida acabava rapidamente. Muitos bebiam a água do próprio rio Kwai e contraíam cólera, morrendo em poucos dias. O rio era infectado com os dejetos dos nativos e era terreno fértil para doenças como a cólera.

Durante a estação das monções, ficávamos ensopados dia e noite. O terreno se tornava escorregadia e lamacento. A única coisa boa a respeito das monções era a água fresca. Nem mesmo banho tomávamos, pois não possuíamos sabão, gilete nem nada para cortar os cabelos, permanecemos desta forma por quase três anos.

Duas memórias desses tempos ainda me atormentam até hoje. A primeira foi a minha designação para um pequeno grupo de trabalho que deveria percorrer campo a campo; se a cólera tivesse infectado a região, nós deveríamos empilhar todos os corpos, alguns dos doentes ainda vivos, e os queimar. Se nos recusássemos a fazer esta tarefa abominável, seríamos executados na hora. Nos todos sentíamos que sem qualquer brilho de esperança, era melhor estar morto do que ser deixado a sofrer lentamente. O fedor da morte e da doença era terrível. Estas lembranças ainda me atormentam em pesadelos.

A segunda memória inesquecível teve lugar em um dos maiores acampamentos, quando eu estava trabalhando na ponte do Kwai. Por um curto período eu era responsável por trazer cargas da floresta para a estrada, no dorso de um elefante. Havia um soldado britânico, que perdera um braço e uma perna, responsável pelo aquecimento de um barril de petróleo de 50 galões para o banho de um oficial japonês. Nestas andanças, achei um pato próximo a uma cabana nativa e o levei para o acampamento, deixando-o aos cuidados deste soldado. Os japoneses pensaram que o pato pertencesse ao oficial, deixando-o em paz. Se pudéssemos alimentar o animal com 4 ou 5 moluscos por dia, o pato colocava um ovo. Foi quando meu melhor amigo e segundo oficial do Sawokla, Dennis Roland, teve um ataque de apendicite. Um holandês o hipnotizou enquanto um médico australiano o operava somente com água fervente e uma faca. O médico usou um pedaço de tela para suturar a incisão. A cada dia dávamos um ovo para Roland. No sétimo dia, recompensávamos o soldado britânico com um ovo por guardar o pato. Este ciclo se manteve por vários meses. Nós até mesmo cozinhávamos a casca do ovo em carvões quentes e a pulverizávamos com pedras para colocar na água de Roland. De alguma forma isso o ajudou, pois dentro de algum tempo Roland se recuperou.

Uma noite, ao voltar da estrada para o acampamento, sentimos que havia alguma coisa realmente errada. Os guardas japoneses gritavam e batiam em todos. Fomos alinhados em frente ao barril do oficial, cheio de água fervente, neste momento os japoneses jogaram o soldado britânico dentro do barril porque ele havia esquentado demais a água para o banho do oficial. Os gritos e as lágrimas nunca me abandonaram.

Ambos, alemães e japoneses, tratavam os marinheiros mercantes como prisioneiros de guerra e não como internos civis. Dos 3.000 prisioneiro de guerra da força H, menos de mil retornaram para Cingapura. Ao fim da guerra, um avião de transporte de tropas levou os americanos para o 142º Hospital Geral do Exército, próximo a Calcutá. Dois aviões foram enviados para os americanos, pois não havia qualquer registro prévio de sobreviventes. Foram transportados de 40 a 50 prisioneiros por avião, cada um contando com um cirurgião e pessoal médico. Quando os ex-prisioneiros chegaram ao hospital, muitos em macas, o corpo médico não resistiu e alguns até choraram. Eles nunca haviam visto seres humanos em tais condições de debilidade antes. Meu peso normal antes de ser feito prisioneiro era de 65 quilos. Quando fui libertado, estava pesando 42,5 quilos. Alguns dos marines do Houston pesavam originalmente mais de 100 quilos, ao serem libertados, eram osso puro, pesando menos de 50 quilos. Os ex-prisioneiros tinham todas as doenças imagináveis: beribéri, disenteria, vermes, malaria, úlcera, escorbuto e inflamações da cabeça ao dedão do pé.

Quando o hospital estava pronto para nos liberar de volta para casa, os militares ex-prisioneiros receberam novos uniformes, medalhas, dinheiro, festas e tratamento médico preferencial na chegada aos EUA. Os marinheiros mercantes foram deixados por sua própria conta e estão desta forma até os dias de hoje, embora tenhamos finalmente recebido o status de veteranos.

Os japoneses se recusaram a nos dar qualquer centavo pelo trabalho escravo e tratamento desumano, embora muitos pedidos tenham sido feitos por todo o mundo. É impossível para qualquer um compreender como um ser humano pode tratar outro de forma tão monstruosa até que você testemunhe.



Fonte deste artigo:
Grandes Guerras
Discurso de Stanley Willner na academia de West Point em 1992
http://www.angelstation.com/swillner/

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