Werwolf e Stalingrado
Rochus Misch narra suas memórias do tempo em que foi guarda-costas do Führer e suas viagens aos QGs Werwolf e Wolfsschanze.
No meio do ano de 1942, o QG do Führer foi deslocado para a Ucrânia, na região de Vinnits(1) (hoje Vinnitsa).Aí, nesse novo local, nesse novo acampamento invadido por um frio glacial de inverno, é que Hitler passaria, com seu QG da Prússia Oriental, a maior parte de seu tempo durante muitos meses.
Quando tinha de acompanhá-lo à Ucrânia, nossa equipe do comando decolava de Berlim pouco mais de uma hora antes do Condor, onde Hitler viajava então. Uma logística que nos permitia chegar ao local justo a tempo de receber o Führer quando ele desembarcava de seu aparelho, maior e mais potente que nossos JU 52.
O QG ucraniano fora instalado numa zona arborizada. A maior parte dos alojamentos fora construída com toras de árvores. Um único bunker fora previsto para a criadagem e as pessoas chegadas ao Führer em caso de ataque aéreo. Hitler tinha seu blockhaus, um refúgio grande de madeira, com uma sala de trabalho, um banheiro, um pequeno espaço para o criado e um quarto mobiliado modestamente.
A exemplo de outros quartéis do Führer, éramos entre seis e oito membros do comando a nos revezar de modo mais ou menos flexível. Ali, também não precisávamos cuidar da central telefônica. O trabalho restringia-se essencialmente a um exercício de presença junto a Hitler. Um de nós devia estar permanentemente à disposição, em seu campo visual ou diante de sua porta, pronto para agir em qualquer circunstância, a qualquer hora do dia ou da noite. No caso, éramos nesse QG menos uma unidade de guarda-costas que um punhado de curiosos parados (Zaungäste).
O quadro, embora eu tivesse ouvido muitas críticas às instalações e ao rigor do clima, era para mim agradável. Tínhamos tempo livre e o desconforto não me incomodava. Eu estava habituado à vida no campo. Durante os momentos de inatividade, pegávamos com freqüência um carro para ir às fazendas de um vilarejo vizinho, situado a apenas dez minutos do QG. Os habitantes ainda estavam todos ali, não tendo suas casas sido evacuadas por nossas tropas. Fazíamos escambo. Eu pedia à minha futura esposa, Gerda, que me enviasse pacotes de sal e agulhas de tricô que eu trocava por óleo de girassol e, às vezes, um ganso. Eu enviava tudo no dia seguinte a Berlim num pacote que colocava no malote de nosso avião postal.
O QG ucraniano foi rebatizado de Werwolf, "Lobisomem", por Hitler. Um velho [NE: "velhos" eram chamadas as pessoas do staff de Hitler que o acompanhavam desde os primeiros dias do NSDAP] é que me explicou então essa mania que Hitler tinha de inserir em tudo o nome Wolf, "lobo". Segundo ele, a história remonta aos anos 1920, bem antes de sua tomada do poder. Hitler acabava de terminar uma importante reunião numa cidade situada em algum lugar da Alemanha. Era tarde. A equipe de seguidores que o acompanhava estava encarregada de encontrar rapidamente um hotel para que o "chefe" fosse se deitar. Receberam vários "nãos". Alguns donos de estabelecimento pretextavam falta de lugar, outros davam a entender por meias palavras não desejar, por motivos ideológicos abrigar o chefe do Partido Nacional-Socialista. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Nem todo mundo era simpatizante do nazismo, longe disso! Mas, naquela noite, foi demais! Um dos membros da escolta propôs simplesmente não mais usar o nome de Hitler para conseguir um quarto.
Rochus Misch é o segundo a direita |
Alguém sugeriu o pseudônimo "Wolf", que teve a felicidade de agradar ao "chefe"(2). A idéia estava lançada.
Wolfsburgo,(3) a cidade da Volkswagen, foi a primeira localidade a tomar o pseudônimo do Führer. Junto veio a série dos QG, a começar pela Wolfsschlucht (a "Toca do Lobo"), situada próximo à fronteira franco-belga(4). Depois, Wolfsschanze e Werwolf, no front oriental. O nome parecia tão colado à imagem de Hitler que uma amiga, Winifred Wagner, não hesitava em chamá-lo às vezes de "Wolfi" na intimidade.
Werwolf foi, com Wolfsschanze, o QG das derrotas. Ali é que se sentiram os primeiros momentos realmente duros, os fracassos repetidos, todo aquele incessar de más notícias do front. Ali também é que os despachos caíam um atrás do outro, dando conta quase incansavelmente dos bombardeios cada vez mais pesados sobre as cidades alemãs. Duvidei. Eu tinha a impressão de que um rolo compressor abater-se-ia sobre nós, que um incêndio incontrolável avançava em nossa direção. Todavia, esses temores não eram manifestados. Pelo menos não na minha frente. No acampamento, nas aléias, nos espaços comuns, sentia-se uma tensão surda, latente, mas muito perceptível às vezes. Acontecia, obviamente, de irromperem discussões, de opiniões divergirem, de um encontro não terminar calmamente, mas nunca mais que isso.
Apesar do desastre que se anunciava e cujos contornos só conseguíamos entrever, nunca assisti a uma verdadeira crise de nervos, a uma cena histérica ou a um momento de esgotamento.
Lembro-me de uma discussão animada entre Hitler e o alto comandante da Wehrmacht. Eu não sabia do que se tratava, mas, em todo caso, estava de serviço por volta das duas da tarde e a porta da sala em que a reunião se realizava não estava completamente fechada. Quando os generais partiram, ouviu-se uma bela música no gabinete de trabalho de Hitler. Olhei pela janela e vi o Führer afundado numa poltrona, completamente concentrado na melodia e na letra da música que tocava em seu fonógrafo. Parecia esgotado, quase triste. O contraste com a discussão enérgica que acabava de acontecer momentos antes era impressionante. O camareiro saiu naquele instante do acampamento. Logo lhe perguntei como se chamava o cantor que o Führer ouvia. Ele respondeu tratar-se de Joseph Schmidt!(5)
Rochus Misch mais ao fundo da imagem |
Nos primeiros dias do outono, Hitler ausentou-se de Werwolf para uma curta estada em Berlim (6). Pouco antes dessa partida, cuja data não me lembro, assisti a uma cena talvez reveladora desse comportamento quase sempre contido e às vezes glacial que o Führer podia adotar (7). Nesse dia, ele estava na área externa, não longe de sua cabana. Lia umas notas, em pé, embaixo de uma árvore, protegido do sol. Fazia calor. Ao lado dele, a alguns metros, estava um de seus ordenanças, Fritz Darges. Esse antigo ajudante-de-ordens de Martin Bormann aguardava pacientemente, mãos atrás das costas, que Hitler lhe dissesse alguma coisa. Quanto a mim, eu não estava muito longe, como de hábito. Uma mosca veio perturbar a leitura do Führer. Começou a voejar em volta dele. Visivelmente irritado, Hitler agitou o maço de folhas para tentar afastá-la, em vão. A mosca voltava sempre. Fritz Darges então começou a sorrir. Um leve ríctus lhe atravessava o rosto. Ele não mudara de posição, continuava com as mãos atrás das costas, a cabeça reta, mas fazia o maior esforço para conter o riso. Hitler viu isso. Disparou-lhe num tom que não podia ser mais seco:
- Se não é capaz de manter um bicho desses longe de mim, significa que não preciso de um ordenança desses!
Hitler não lhe disse que ele estava demitido, mas Darges compreendera. Fez as malas horas depois. Acredito que foi enviado para o front.
Stalingrado
Hitler deixou a Ucrânia para voltar ao QG da Prússia Oriental(8). Esteve poucos dias ali antes de uma curta estada na Bavária (9). Dali, decidiu voltar de trem especial à Toca do Lobo, acompanhado de seu estado-maior geral. Não se falava em outra coisa senão da batalha de Stalingrado. As ofensivas soviéticas forçavam cada vez mais as nossas linhas e os primeiros frios do inverno não anunciavam nada de bom. Dia a dia, a situação parecia degradar-se inexoravelmente.
Eu estava de serviço certa manhã, de guarda diante do alojamento de Hitler. Ele acabava de tomar o café-da-manhã, sozinho em sua mesa. Bussmann, seu camareiro, saiu então da sala para me pedir que fosse buscar o general Paulus, que se encontrava no QG (10).
- Ele pode vir agora falar com o chefe - disse.
Fui primeiro ao alojamento de Keitel, onde ele não estava. O ordenança do marechal ali presente aconselhou-me a procurar no Casino. Fui, cruzei com o criado de Paulus, que me disse que seu patrão estava disponível. Apresentei-me então diante desse general de quem tanto se falava e pedi-lhe que fosse ao alojamento do Führer com estas poucas palavras:
- Herr general Oberst, queira me acompanhar, o Führer o espera.
Naquele dia, a temperatura baixara ligeiramente. Paulus usava um capote comprido que lhe chegava quase aos tornozelos. Acompanhei-o até a porta do bunker de trabalho do Führer. Bussmann, com quem eu me dava bem, estava lá dentro e cuidava do serviço. Ouviu tudo. A intervalos mais ou menos regulares, saía da sala e vinha me contar o que era dito ali.
Hitler e Paulus estavam sentados à mesa. A conversa entre eles durou cerca de 45 minutos. Não havia estenógrafo. Paulus teria inicialmente informado sobre a situação que predominava em Stalingrado. Em seguida teria defendido longamente a idéia de uma retirada de suas tropas da cidade para irem ao encontro do exército de Kleist reunido no Cáucaso. O Führer, que sempre se opusera a tal opção, naquela manhã acabou aderindo aos argumentos do general.
- Eles acabam de discutir sobre uma retirada estratégica do front oriental garantiu-me Bussmann de viva voz. - Concordaram sobre este ponto.
Bussmann até frisou ter ouvido Hitler afirmar que era preciso recorrer a tal retirada "bem depressa, senão será tarde demais". Ao meio-dia, os dois encerraram a discussão para irem à reunião militar diária, que começou com atraso, pouco depois de meio-dia e meia. Todos os chefes do estado-maior estavam presentes: Keitel, Jodl, Göring, o almirante Raeder ou talvez até ainda Dönitz, Warlimont e Zeitzler. Difícil citar todos de cabeça.
Fiquei diante do acampamento até por volta das duas. Depois que um colega me rendeu, devo ter dado um pequeno passeio antes de ir sentar-me no Casino, lá pelas quatro horas. Dali,pude ver que a reunião ainda não acabara. Só às seis, os primeiros participantes foram vistos saindo da sala. Alguns deles escolheram instalar-se para comer e beber alguma coisa. Puseram-se a falar. Logo compreendi que os dois campos se opuseram desde o início da tarde. De um lado, Göring defendia a idéia de que era necessário, a todo custo, segurar as posições, sobretudo não deixar o Volga, "artéria vital da URSS" segundo seus próprios termos. De outro, Paulus incansavelmente pedia autorização para abandonar o mais depressa possível as posições que ocupava em Stalingrado com seu VI Exército. Após algumas horas de debate intenso, Hitler mudou radicalmente de opinião e ficou do lado de seu comandante-em-chefe da Luftwaffe. Os argumentos de Göring, segundo os quais a ocupação da parte sul do Volga impediriam Stalin de ter acesso às reservas petrolíferas do mar Cáspio e, portanto, de continuar a guerra, ao que parece, terminaram por convencer o Führer. Ficou decidido que as tropas alemãs não cederiam nem um centímetro. As rotas estratégicas deveriam continuar em suas mãos, como único meio de assegurar a vitória final (11).
Paulus nada deixou transparecer ao sair da reunião. O general, como de hábito, foi econômico nas palavras e sóbrio nos gestos. Tinha a cara fechada, a expressão grave, mas não estava abatido. Embarcou imediatamente em seu carro e foi para o QG da Wehrmacht, situado não longe dali, na floresta de Mauerwald.
As semanas que antecederam a queda de Stalingrado foram penosas. A cada dia, nos quartéis da Wolfsschanze, a tensão era um pouco maior. Tanto que o anúncio do fim dos combates não me marcou a ponto de eu me lembrar disso (12). A agonia do exército de Paulus afetou nossos espíritos o tempo todo.
Hitler nada demonstrou. Externamente, pelo menos. Segundo o que pude ver, o Führer não modificou em nada seu comportamento nem seus hábitos nesse período. Parecia sempre igualmente seguro de si, parcimonioso em confidências e decidido (13). Os momentos de solidão e isolamento, esses períodos cada vez mais longos passados a sós na sala ou no gabinete de trabalho de seu alojamento, decerto aumentavam, mas já se percebia essa tendência no ano anterior. Só suas viagens à Alemanha ficaram mais raras.
NOTAS
(1) A decisão de aproximar do front o QG do Führer foi tomada no fim de junho.
Hitler esteve lá pela primeira vez a 16 de julho, voando diretamente da Wolfsschanze, na Prússia Oriental. Esse QG situa-se 200 quilômetros a sudoeste da cidade de Kiev.
(2) Em 1919-1920, Hitler teria escolhido responder ao nome de "Wolf" quando trabalhava como informante para o Reichswehr. Gostava de se chamar dessa maneira porque esse pseudônimo evocava força e teria uma vaga sonoridade próxima com Adolf.
(3) Cidade da Baixa Saxônia, fundada em 1938 pela reunião de diversas comunas para alojar os operários das fábricas de automóveis.
(4) Início de junho de 1940. Hitler desloca seu QG de Euskirchen (Felsennest, "Ninho de rochas") para Bruly-de-Pêche (não longe de Bruxelas).
(5) Tenor lírico nascido em 1904 na Romênia, de pais judeus ortodoxos. Começou como cantor do ritual judaico. Estudou canto em 1925 em Berlim, onde logo se tornou uma celebridade dos programas radiofônicos. Reconhecido e apreciado na Alemanha por seu timbre de voz excepcional e seus primeiros papéis em filmes musicais, fugiu da Alemanha nazista em 1933. Seus discos todavia foram vendidos em bancas de discos na Alemanha até 1938. "O pequeno homem da grande voz" morreu em 1942, num campo de refugiados na Suíça.
(6) De 28 de setembro a 4 de outubro de 1942.
(7) Nenhuma data mais precisa pôde ser encontrada.
(8) Em 1º de novembro de 1942.
(9) De 8 a 22 de novembro, Hitler esteve em Munique e passou alguns dias no Berghof.
(10) Em 19 de novembro, as forças soviéticas iniciam sua ofensiva em torno de Stalingrado, ocupada em parte pelos soldados alemães. Em 25 de novembro, o VI Exército do general Friedrich Paulus encontra-se inteiramente cercado.
(11) Göring assegurara também que era possível apoiar as tropas de Stalingrado pelo ar apesar das péssimas condições climáticas. O que se verificou totalmente irrealista.
(12) A 31 de janeiro, Paulus capitula. A 2 de fevereiro de 1943, a última tropa de soldados depõe as armas. No dia 3, a notícia está na primeira página dos jornais. O país está profundamente abalado. Reações na Alemanha citadas em Kershaw.
(13) As convicções das pessoas chegadas a Hitler no início desse ano de 1943 são citadas por Below em seu livro.
Fonte deste artigo: Misch, Rochus. Eu fui guarda-costas de Hitler. Objetiva, 2006.
http://www.grandesguerras.com.br/relatos/text01.php?art_id=137