segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Extrato do processo verbal de uma reunião de Hitler com os dirigentes do Reich sobre os objetivos da guerra contra a União Soviética

Martin Bormann
16 de julho de 1941

(Secreto)

Quartel general do comandante chefe

Por ordem do führer realizou-se hoje às 15 horas uma reunião na sua residência com a participação do Reichsleiter Rosenberg, do ministro do Reich Lammers¹, do marechal Keitel, o marechal do Reich e eu próprio².

A reunião começou às 15 horas e prolongou-se até cerca das 20 com um intervalo para tomar café.

na sua declaração inicial, o führer sublinhou que queria apresentar algumas noções de principio. Na hora atual, são necessárias várias medidas. Testemunham-no os artigos de um jornal indiscreto de Vichy, segundo o qual a guerra contra a URSS seria a guerra da Europa. Assim, a guerra deve ser travada por assim dizer no interior de toda a Europa. Com esta posição o jornal de Vichy pretende talvez significar que os benefícios desta guerra não devem caber exclusivamente à Alemanha, mas a todos os Estados europeus.

Atualmente, importa que não revelemos publicamente os nossos objetivos, coisa que, além do mais, seria inútil. O essencial é que saibamos o que queremos. De modo algum devemos tornar mais difícil o nosso caminho com declarações supérfluas. Tais explicações são supérfluas porque só podem fazer o que estiver dentro das nossas possibilidades, e o que está para além das nossas forças escapa-nos.

Para o mundo,  a motivação das nossas ações devem fundamentar-se em razões táticas. Devemos agir neste caso do mesmo modo que na Noruega, na Dinamarca, na Holanda e na Bélgica. Em todos estes caos nada dissemos acerca dos nossos objetivos, e no futuro usaremos a mesma inteligência e continuaremos a não o fazer.

Portanto, sublinharemos novamente que fomos forçados a ocupar uma região, impor nela a ordem e estabelecer a segurança. Fomos obrigados, no interesse da população, a assegurar a tranqüilidade, os abastecimentos, o funcionamento dos meios de transporte, etc.. Nisso se baseia a possibilidade de uma anexação. Assim, não deve dar a entender que se trata de uma anexação definitiva. Contudo, apesar disso aplicamos e aplicaremos todas as medidas necessárias tais como deportações, execuções, etc..

Mas não queremos fazer de quem quer que seja nosso inimigo demasiado cedo. Por esta razão agiremos como se quiséssemos aplicar um mandato. Mas deve ser claro para nós que nunca mais abandonaremos estas regiões.

Partindo daqui, trata-se dos seguintes casos:
1. Nada construir para a anexação definitiva, mas tudo preparar em segredo para isso.
2. Sublinharemos que trazemos liberdade

Em particular:

A Crimeia deve ser libertada de todos os estrangeiros e povoada de alemães. Do mesmo modo a Galícia austríaca deve tornar-se uma província do Reich alemão.

Atualmente as nossas relações com a Romênia são boas, mas ninguém sabe no que se tornarão no futuro. Deve ter-se isto em conta e devem-se organizar em conseqüência as nossas fronteiras. Não podemos depender das boas intenções de terceiros estados. Devemos estabelecer as nossas relações com a Romênia partindo desse principio.

Em suma, trata-se de um grande bolo de que devemos tomar posse, dirigir e explorar.

Agora os russos deram ordem de criar a guerra de guerrilhas na retaguarda das nossas tropas. Esta guerra também traz vantagens: permite-nos destruir tudo o que se levante contra nós.

O essencial:

Nunca mais deve ser possível a criação de uma potencia militar a ocidente dos Urais, mesmo que para isso tenhamos que manter a guerra durante 100 anos. Todos os sucessores do führer devem saber que o Reich só se encontrará em segurança quando, a ocidente dos Urais, não haver tropas estrangeiras. A Alemanha encarrega-se de defender este espaço contra qualquer perigo eventual. deve adotar-se uma regra absoluta: "Nunca permitir alguém, exceto os alemães, use armas".

Isto é capital. Mesmo se, no futuro próximo, nos parece fácil convencer os povos estrangeiros dominados a dar-nos uma ajuda armada, agir assim seria um erro. Um belo dia tudo se voltará obrigatória e inevitavelmente contra nós. Só o alemão tem o direito de usar armas, e não um eslavo, um tcheco, um cossaco ou um ucraniano.

Em caso algum devemos praticar uma policia hesitante como antes de 1918 na Alsácia. O inglês distingue-se sempre porque segue continuamente uma única linha,  um único fim. Neste ponto de vista teremos obrigatoriamente de aprender com os ingleses. E por essa razão, não temos o direito de fazer depender as nossas relações de certas personalidades. devemos tomar como exemplo a atitude dos ingleses na Índia, em relação aos príncipes hindus: um soldado deve sempre defender o regime.

Devemos transformar as regiões do Leste novamente conquistadas num jardim paradisíaco. Tem pra nós uma importância vital. Comparadas com elas, as colônias tem um papel completamente secundário.

Mesmo nos caso sem que separemos certas regiões, devemos sempre apresentar-nos como defensores do direito e da população. É preciso escolher desde já as formulas necessárias. Não falaremos de uma nova região do Reich, mas de uma missão necessária decorrente da guerra.

Em particular: nos países bálticos, a região que se estende até ao Dvina, de acordo com o marechal Keitel, deve desde já ser colocada sob a nossa administração.

O Reichsleiter Rosenberg sublinha que, na sua opinião, em cada região(comissariado), a atitude para com a população deve ser diferente. Na Ucrânia, deveríamos fazer promessas no domínio da cultura, deveríamos despertar a consciência histórica dos ucranianos, abrir uma universidade em Kiev, etc..

O marechal do Reich opõe-se a esta ideia indicando que em primeiro lugar devemos assegurar o nosso abastecimento de viveres, e o resto virá mais tarde.

(Uma questão subsidiaria: haverá ainda em geral uma camada de intelectuais na Ucrânia, ou terão emigrado para fora da Rússia atual os ucranianos pertencentes às classes superiores?)

Rosenberg continua: na Ucrânia, devem igualmente ser devolvidas certas tendências autonomistas.

O marechal do reich pede ao führer que indique quais as regiões prometidas a outros Estados.

O führer responde que Antonesco quer obter a Bessarábia e Odessa com um corredor indo de Odessa para Oes-noroeste. Em resposta às objeções de Rosenberg e do marechal do Reich, o führer indica que a fronteira pedida por Antonesco ultrapassa um pouco a antiga fronteira romena. Sublinha que nenhuma promessa precisa foi feita aos húngaros, aos turcos e aos eslovacos.

O führer propõe que se examine se não se deve entregar imediatamente a parte austríaca da Galícia ao governo geral. Depois de uma troca de opiniões, o führer decide não transferir esta parte para o governo geral, mas subordiná-la ao ministro do Reich Frank(Lvov).

O marechal do Reich considera que se deve anexar à Prússia oriental diferentes partes dos países bálticos, por exemplo as florestas de Bialystok.

O führer sublinha que toda a região báltica se deve tornar uma região do Reich.

Do mesmo modo, a Crimeia com as regiões vizinhas(regiões situadas ao norte) deve fazer parte do Reich. Estas regiões devem ser tão grandes quanto possível.

Rosenberg exprime algumas dúvidas no que diz respeito aos ucranianos que lá habitam.

(De passagem: foi notado por varias vezes que Rosenberg presta muita atenção aos ucranianos. Ele pretende também aumentar consideravelmente a velha Ucrânia.)

O führer sublinha que a colônia situada na região do Volga deve formar uma região do Reich, como a região de Baku. Deve tornar-se uma concessão alemã(colônia militar).

Os finlandeses querem obter a Carélia do Leste. mas tendo em conta a rica produção de níquel, a península de Kola deve pertencer a Alemanha.

Com todas as precauções deve ser preparada a anexação da Finlândia como estado aliado. Os finlandeses querem a região de Leningrado. O führer quer arrasar Leningrado para em seguida a dar aos finlandeses...
O Reichsleiter Rosenberg levanta o problema da direção.

O führer dirige-se ao marechal do Reich e ao marechal dizendo que continuava a insistir na necessidade de dotar os regimentos da policia de carros de combate. Para utilizar a policia nas novas regiões do leste isto é muito importante pois, dispondo de um numero suficiente de carros, a policia poderá fazer muitas coisas. Aliás, sublinha o führer, as forças de segurança são muitos fracas. Mas o marechal do reich transferirá os seus aeródromos de treino para as novas regiões e, em caso de revolta, os aviões Ju-52 poderão efetuar bombardeamentos. O enorme espaço deve ser pacificado tão depressa quanto possível. O melhor meio de o conseguir é fuzilar quem quer que olhe de lado.

O marechal Keitel sublinha que se deve responsabilizar a população pelos seus próprios assuntos, visto que, naturalmente, é impossível colocar um guarda diante década barraca, em cada cais. Os habitantes devem saber que todo aquele que ficar inativo será fuzilado e que serão eles os responsáveis por todos os delitos.

A uma pergunta do reichsleiter Rosenberg o führer responde que é necessário restaurar a imprensa, por exemplo na Ucrânia, para poder agir sobre a população local...

O reichsleiter Rosenberg pede que seja posto à sua disposição um imóvel para os seus serviços. Pede o edifício da representação comercial soviética situado na Lietzenburgerstrasse. Contudo, o Ministério dos negócios Estrangeiros é de opinião que este edifício goza de extraterritorialidade. O führer responde que isso são futilidades. Fica encarregado o ministro do Reich, Dr. Lammers, de informar o Ministério dos negócios Estrangeiros que este edifício deve ser imediatamente posto á disposição de Rosenberg sem quaisquer conversações...

(O original alemão encontra-se nos Arquivos Centrais da URSS, fundo 7445, registro 2, dossier 162, folhas 433-443)

Transcrição: Daniel Moratori - avidanofront.blogspot.com
Fonte: COELHO, Zeferino - O crime metódico. Ed. Inova Limitada -pag. 22-28

1. Hans Lammers, chefe da chancelaria do Império; em 1949 foi condenado por crimes de guerra a 20 anos deprisão, mas foi libertado pelos americanos em 1951.
2. Trata-se de Bormann.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Extrato de uma declaração de N. Gorbatcheva sobre a execução de soviéticos em Babi-Yar pelos alemães


Babi Yar, Ucrânia, prisioneiros de guerra soviéticos na exumação de corpos de vítimas que foram assassinadas em outubro de 1941, fotografia de em 1943.
Kiev
28 de novembro  de 1943

 ...Durante a ocupação de Kiev pelos alemães, eu morava na rua Tiraspolskaia, nº 55, apartamento nº2.  A minha casa ficava perto de Babi-Yar.

Em 22 de Setembro de 1411 vi chegar durante o dia cerca de 10 caminhões carregados de judeus, homens, mulheres e crianças;  algumas mulheres traziam bebês ao colo.

Juntamente com várias mulheres minhas vizinhas aproximei-me sem ser notada pelo serviço de guarda alemão do local onde paravam os caminhões e onde desciam os prisioneiros. Vimos que a cerca de 15 metros de Babi-Yar os alemães obrigavam os judeus a despir-se e mandavam-os correr ao longo de uma vala, fuzilando-os com pistolas-metralhadoras.

Eu própria vi como os alemães lançavam as crianças na vala. Lá no fundo estavam não só fuzilados, mas também feridos entre os quais, crianças. Os alemães tapavam a vala, mas a fina camada de terra mexia com os movimentos dos que estavam vivos.

Muitas pessoas, pressentindo a sua morte, perdiam os sentidos, rasgavam as roupas e arrancavam os cabelos, lançavam-se aos pés dos soldados alemães, mas em resposta eram espancados.
O fuzilamento dos judeus durou vários dias.

Aconteceu encontrar-me junto do campo de prisioneiros de guerra de Syretz. Vi que os soldados e os oficiais do Exercito Vermelho presos não tinham roupa nem calçado, e que muitos homens estavam amarrados uns aos outros, a uma distancia que lhes permitisse trabalhar.

No inverno de 1942, não me recordo exatamente do mês, os soldados alemães levaram para Babi-Yar 65 marinheiros presos. Tinham as mãos e os pés amarrados e tal modo que tinham dificuldade em deslocar-se. Andavam completamente despidos e descalços na neve com um tempo muito frio.

Os habitantes atiraram para a coluna de prisioneiros camisas e botas, mas estes recusaram-nas, e lembro-me que um deles disse: "Morremos pela pátria". Depois desta declaração, começaram a cantar a Internacional, e os soldados alemães batiam-lhes com bastões. Via-se pelos bonés que eram marinheiros. Foram todos fuzilados.

No campo dos prisioneiros de guerra de Syretz, os alemães construíram um forno para queimar vivos os guerrilheiros, os comunistas e os militantes soviéticos.

Da janela do meu quarto, via os alemães a lançarem homens vivos no forno aceso e, por vezes, ouvia-se em minha casa os seus gritos aos serem queimados.

Na primavera de 1943 vi levarem para Babi-Yar 4 caminhões com civis. Segundo diziam os habitantes, estes homens foram trazidos de um local onde os alemães tinham prendido um guerrilheiro. Foram queimados no forno.

Uma vez vi uma mulher que, ao passar junto dos prisioneiros de guerra de Syretz, atirou por cima da cerca um pedaço de pão para os prisioneiros. As sentinelas fuzilaram-na ali mesmo.

No verão de 1943, na época do corte da madeira, vi os alemães obrigarem um prisioneiro a subir a uma arvore que os outros estavam a serrar. A arvore caiu e com ela o homem, que morreu.

Pela mesma altura vi os alemães obrigarem os prisioneiros a fazer ginástica, isto é,a rastejarem sobre o ventre numa extensão de 200 metros com as mãos atadas atrás do das costas. Se alguns dos homens se levantavam, os guardas os espancavam-nos.

No mesmo campo de Syretz, vi os alemães obrigarem um prisioneiro culpado a deitar-se de bruços com as mãos atadas atrás das costa, atiçando-lhe depois os cães. Estes mordiam no prisioneiro mas ele não podia resistir, de contrario o espancavam. Se o prisioneiro perdia os sentidos, obrigavam outros detidos a enterrá-lo vivo.

Gorbatcheva
(O original alemão encontra-se nos Arquivos centrais da U.R.S.S. sobre a Revolução de Outubro, fundo 7021, registro 65, dossier 6, folhas 11 e 12)

Transcrição: Daniel Moratori - avidanofront.blogspot.com
Fonte: COELHO, Zeferino - O crime metódico. Ed. Inova Limitada - pg.114-116

Nota adicional sobre a foto:
Durante julho de 1943, quando os soviéticos chegaram mais perto da cidade, duas unidades especiais  alemães foram formadas sob o nome de código 1005. Seu objetivo era cobrir os vestígios dos assassinatos em massa e eles supervisionaram prisioneiros de guerra que foram forçados a desenterrar os corpos nos locais do homicídio e queimá-los. 


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Os judeus de Varsóvia no entreguerras - Parte 2/3


Delegados de Wegrow, Grodno, e outras cidades marcham na convenção nacional de Tsukunft, o movimento juvenil  judeu socialista Bund (Varsóvia, 1931).
No período entre as duas guerras mundiais, os judeus poloneses, e especialmente os de Varsóvia, desempenharam um papel central na vida judaica em todo o mundo. Superada apenas por Nova Iorque, no que diz respeito à quantidade de judeus, Varsóvia continha uma vida judaica que era, ao mesmo tempo, tradicional e criativa, religiosamente conservadora e nacionalista. Apesar do intenso movimento na cultura polonesa, os judeus da Polônia se viam antes como parte do povo judeu disperso pelo mundo do que como parte integrante daquela sociedade.

De 1918 em diante, Varsóvia foi a capital de uma Polônia independente, abrangendo áreas que por mais de um século haviam sido ocupadas por potências estrangeiras decididas a solapar o nacionalismo polonês. Sob ocupação russa, Varsóvia tinha sido o alvo principal de uma política que visava a erradicar qualquer vestígio de nacionalismo polonês. Não obstante, e a despeito dos esforços russos, a geração mais jovem permaneceu politicamente orientada e nacionalista. Varsóvia foi também palco de impulso e desenvolvimento econômico. 

Assim como na Europa Ocidental, empreendedores judeus desempenharam um papel desbravador em bancos, ferrovias, finanças internacionais e novas indústrias. Famílias judaicas tiveram considerável participação no estabelecemento de uma economia capitalista e sua expansão por toda a Polônia. Muitos desses pioneiros econômicos eram rodeados de assistentes e agentes leais, que em sua maioria eram judeus. A semelhança dos judeus da "parte alta" da cidade de Nova Iorque, alguns membros dessas famílias de destaque se converteram ao cristianismo quando ainda jovens, enquanto outros, da segunda ou terceira geração, se assimilaram na aristocracia e burguesia polonesas. Outros permaneceram na comunidade judaica. 

O impacto desses indivíduos e famílias se estendeu ao desenvolvimento e progresso de instituições artísticas e culturais, jornalismo e editoras. Na filantropia, judeus contribuíram amplamente para a educação e a fundação de hospitais e instituições públicas de beneficência. Seus generosos donativos permitiram que judeus que pensavam da mesma maneira progredissem na sociedade polonesa, mas seu progresso, no entanto, freqüentemente atenuava seus vínculos, sua utilidade e sua lealdade para com a comunidade judaica. Ainda assim, quando essas famílias estavam em boa situação, seus membros contribuíam generosamente para as necessidades públicas da população polonesa em geral ou dos judeus. Alguns deles — mas de modo algum todos — também eram ativos em questões da comunidade judaica.

O crescimento de Varsóvia como comunidade judaica influente resultou da migração de judeus durante várias gerações. Em 1781, quando a Polônia estava prestes a perder sua independência, havia em Varsóvia 2.609 judeus. Em Praga, um subúrbio da cidade na margem oriental do rio Vístula, a comunidade judaica totalizava 24 indivíduos. No limiar do século XX, em 1897, esta mesma comunidade seria formada por cerca de 219.128 judeus. Ao irromper a Primeira Guerra Mundial, os judeus de Varsóvia constituíam 38% de toda a população da cidade, percentual esse que se tornaria ainda maior quando refugiados e pessoas deslocadas acorreram a Varsóvia durante a guerra. Na república independente da Polônia dos anos de entreguerras, o número de judeus vivendo em Varsóvia cresceu em termos globais, mas declinou em termos relativos. Em 1921, a comunidade judaica abrangia 310.300 pessoas, ou seja, 33% dos 936.700 habitantes de Varsóvia. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, havia em Varsóvia uns 375 mil judeus, e eles compunham 29,1% dos 1.289.000 habitantes da cidade.

Os números por si só não refletem a importância da comunidade judaica de Varsóvia no entreguerras. A Varsóvia judaica não possuía a tradição e a distinção que caracterizavam outras comunidades judaicas da Polônia, tais como Cracóvia, Lublin e Lvov, onde judeus haviam vivido por gerações. Varsóvia não tinha prédios antigos e nem a aura de gloriosas lembranças, vestígios de um passado influente não havia sinagogas antigas como a de Cracóvia; nenhuma que tivesse sido lar de eruditos mundialmente famosos. No cemitério judeu de Varsóvia, a lápide mais velha datava de 1807. Havia, não obstante, amplas oportunidades de recém-chegados causarem impacto, e tinha-se a sensação de uma comunidade que ia adquirindo personalidade própria. As fachadas relativamente novas de Varsóvia e o seu rápido crescimento eram fontes de receptividade. Habitantes novos e visitantes casuais podiam se sentir bem-vindos. A mudança social predominava sobre a estabilidade.

Devido, em parte, à rejeição pela sociedade polonesa desses assimilacionistas em potencial, idéias que vinham do leste — regiões da Rússia e Lituânia, onde a cultura nacionalista judaica já havia adquirido variadas formas de organização e maturidade ideológica — iam ganhando influência cada vez maior na comunidade dos judeus de Varsóvia. A vida judaica caracterizava-se por um grande número de partidos políticos, instituições parcialmente coincidentes, debates públicos violentos e rixas particulares. 

Três movimentos judaicos politicamente realistas e perspicazes emergiram às vésperas da independência da Polônia: o sionismo, com suas várias orientações; o Bund e suas organizações; e o Agudath Israel, que unia elementos ortodoxos, hassídicos e mitnaged (opositores ortodoxos do hassidismo) do judaísmo polonês. Todos os três movimentos viam os judeus como uma nação distinta, separada dos poloneses, muito embora suas definições divergentes sobre o que constituía uma nação distinta levassem por vezes os três grupos a uma amarga rivalidade.

O movimento sionista na Polônia adotou dois princípios fundamentais: o reestabelecimento de judeus na Palestina e os direitos fundamentais de judeus vivendo na Diáspora. Os sionistas acreditavam que um renascimento nacional na Palestina também teria de prover os judeus na Diáspora, fora da Palestina, durante sua aparentemente longa estada na Europa, com o sentido da unidade nacional. Na Polônia, o sionismo empreendeu no âmbito da sociedade judaica em Diáspora uma intensa atividade como "trabalho para o presente", tendo como meta futura a colonização na Palestina (muito embora no período de entreguerras o Hechalutz e outros movimentos juvenis sionistas estivessem ativamente engajados em incentivar a imigração na Palestina como uma "atividade dos dias de hoje"). O hebraico foi ressuscitado como língua viva, mas o ídiche continuou sendo a língua de trabalho do movimento. 

O Bund, a Federação Geral de Trabalhadores Judeus dedicada ao nacionalismo judeu laico, usava o ídiche tanto para organizar estes trabalhadores numa estrutura separada quanto para disseminar a idéia do socialismo entre os seus falantes. O Bund não tardou a advogar direitos nacionais baseados em autonomia nacional e cultural: o direito do indivíduo, ou grupo de indivíduos, de conservar, num Estado especificamente socialista, uma língua, cultura e vida social separadas. 

O Bund trabalhava em escala nacional por toda a Polônia, e suas principais conexões eram freqüentemente baseadas em classe. Assim, preferia trabalhar Com partidos socialistas locais não judeus do que com organizações judaicas burguesas. Ao mesmo tempo, muitos judeus poloneses convergiam para um partido socialista separado, não com base internacional e sim, nacional judaica Esse fenômeno era desconhecido na Europa Ocidental, tuas tornou-se um movimento de força considerável e de impressionantes realizações na Polônia do entreguerras.


Reunião ao ar livre da Organização da Juventude bundista,Varsóvia, junho de 1932.
O Agudath Israel - o partido ortodoxo que incluía grandes grupos hassídicos — adotou certos aspectos de organização política moderna semelhantes aos de outros partidos políticos, não obstante sua vinculação à tradição e sua meticulosa observância das normas judaicas. Esses aspectos incluíam representação em instituições de governo e limitadas reformas no sistema educacional. O Agudath Israel possuía uma imprensa, líderes políti-cos e um sistema de patronagem próprios. Os judeus ortodoxos, em sua maioria, rejeitavam o sionismo porque este buscava o retorno dos judeus à sua terra através de esforço humano, e não por decreto divino. O Agudath Israel, quietista em sua orientação religiosa, só acreditava no renascimento da nação judaica como um ato divino.

 Apenas um pequeno grupo desproporcionalmente influente de judeus religiosos, organizados no movimento Mizrachi, punha-se ao lado dos sionistas laicos. Advogavam o sionismo e eram opostos ao Agudath Israel, e também se opunham aos sionistas laicos, com os quais, entretanto, trabalhavam de perto e cooperativamente, buscando estabelecer um caráter religioso e cultural nos esforços sionistas.

 Os princípios orientadores da ideologia política adotada pelos judeus poloneses no período de entreguerras admitiam que o judaísmo era não só uma religião definida por seus rituais, crenças e práticas, mas também que os judeus constituíam uma entidade nacional, buscando política, educação e cultura nacionalistas.

Em Varsóvia, localizavam-se sedes de partidos políticos, representantes e instituições estatais; o centro administrativo de organizações de beneficência e auto-ajuda; o eixo de vários tipos de redes educacionais e culturais, grupos de escritores, e admiradores das línguas ídiche e hebraica. Jornais e livros eram, em sua maioria, publicados em Varsóvia, para serem distribuídos através da Polônia e enviados para o exterior. 

Poder treinar para as profissões liberais era uma atração que levou muitos estudantes judeus de Varsóvia e de outras partes do país a estudar em escolas de ensino superior. Em alguns anos, os judeus, inclusive muitas mulheres, constituíam uma substancial percentagem dos formados de todas as escolas secundárias e universidades. Diplomados judeus procuravam as universidades para poder continuar seus estudos de medicina, farmácia, direito, humanidades, química, língua e literatura polonesas. Mas o percentual de judeus na educação anos de superior entrou em constante declínio no período entreguerras. Nos 1921-22, judeus formavam 24,6% de todos os estudantes; em 1925-26, 20,7%; em 1934-35, 14,9%; e em 1937-38, 9,9%.

Nos últimos anos de independência polonesa anteriores à Segunda Guerra Mundial, o número de estudantes judeus preencheu o limite estabelecido por quotas, uma política nunca formalmente autorizada mas executada na prática. Levando em conta que a percentagem de estudantes de áreas urbanas era bem maior que a de estudantes de distritos de províncias, parecia que o número de estudantes judeus decrescia conforme a camada da população a que pertenciam.

 Estudantes judeus organizaram sua própria associação e fundaram a Casa dos Acadêmicos, um pensionato para trezentos estudantes e uma sala de reuniões para muitos outros. De 1928 até irromper a guerra, o historiador judeu e líder sionista Yitzhak Schiper foi seu último diretor. Instituição abrangente de estudantes judeus e organizações judaicas, cuidava não só da defesa de estudantes atacados por grupos malévolos de jovens poloneses, mas também da promoção de atividades culturais e eventos esportivos.

Em todos os níveis, até mesmo nas escolas independentes, os estudos eram feitos na língua polonesa. Alguns erroneamente consideram esse extenso uso do polonês, especialmente como idioma cotidiano dos jovens, como indício de uma assimilação que se espalhava entre os judeus em geral e particularmente entre os de Varsóvia. A assimilação, porém, não atraía os judeus. Ao contrário, ela estava em declínio na Polônia de entreguerras. Judeus falavam polonês e eram ávidos leitores de literatura polonesa e de autores poloneses, que freqüentemente retratavam judeus de maneira muito positiva. Muitos jovens também apoiaram a luta da Polônia pela independência. Ao mesmo tempo, no entanto, estavam conscientes do seu judaísmo, filiavam-se a organizações judaicas, e pensavam em termos do futuro judaico. Diferentemente de muitos judeus alemães, que se consideravam alemães, os judeus poloneses absorviam a cultura polonesa mas não se assimilavam nela. Em sua maior parte, a assimilação de judeus de fala Polonesa não era mais comum do que a assimilação dos hassídicos falantes de inglês do Brooklyn.

 A contribuição dos judeus e daqueles de origem judaica à literatura polonesa, particularmente à poesia, no período de entreguerras foi característica. Ao contrário dos romancistas judeus americanos no período pós-Segunda Guerra Mundial, tais como Saul Bellow, Philip Roth e Bernard Malamud, poucos dos principais escritores de origem judaica tratavam de temas judaicos, e alguns até s  converteram ao cristianismo. Mas mesmo aqueles que usavam temas judaicos retratavam judeus como figuras fora do seu próprio mundo espiritual. 

A despeito da instabilidade política e da debilidade econômica, a cultura judaica em Varsóvia possuía uma vitalidade única. Varsóvia era o maior e mais importante centro de atividades criativas e culturais tanto em hebraico quanto em ídiche. O hebraico, a língua sagrada, lembrava os dias em que os judeus estavam cm seu próprio país, o tempo da maior criatividade do povo judeu. Era a língua do Livro e de oração — mas o hebraico se tornara uma obscurecida lembrança nas mentes e línguas dos judeus. O renascimento do hebraico: Diáspora, no século XIX, foi acompanhado por tentativas de renovar a língua na literatura e em periódicos. Embora popular nos círculos intelectuais, não cativou as massas para se tornar uma língua do povo. Só quando o hebraico foi adotado pelo movimento sionista e se tornou parte essencial do renascimento nacional e social, transformou-se de um símbolo em uma língua viva. Os sionistas foram os principais advogados da língua hebraica. Em contraste, o Bund se opunha ao hebraico, e certos elementos do Agudath Israel eram contrários à laicização da língua sacra.

 Na Diáspora, especialmente na Polônia, o ídiche continuou sendo a língua do povo. No entreguerras as línguas judaicas floresceram na Polônia, Varsóvia em particular, mesmo quando estavam sendo abandonadas na União Soviética e no Ocidente. Fora dos círculos de imigrantes nos Estados Unidos, o uso das línguas diminuiu. Na última década do século XIX, o ídiche atingiu a maturidade e, no século XX, literatura, jornais e outras publicações se desenvolveram cultural e comercialmente.

Os escritores e poetas, jornalistas e editores de Varsóvia não eram, em sua maioria, naturais da cidade, e sim a ela atraídos de distantes distritos do leste, da Lituânia e das pequenas cidades provinciais da Polônia. O crescimento e a consolidação de Varsóvia como um eixo cultural deveu-se não só ao fato de sediar a maior população judaica urbana da Europa, mas também às suas estimulantes tendências social-nacionalistas e seus mutáveis estilos de vida.

Na Polônia independente havia uma abundância de diários e semanários judeus, a maioria em ídiche, mas alguns em polonês e hebraico. Em acréscimo à imprensa comercial, também eram publicados jornais diários de partidos. Nos anos que precederam de pouco a Segunda Guerra Mundial havia em toda a Polônia, de acordo com o YIVO(1), 230 jornais em ídiche, incluindo 27 diários, 100 semanários, 24 publicações quinzenais e 58 periódicos mensais. Tais números, evidentemente, incluíam publicações de vida curta assim como per-manentes. A maior parte dos jornais principais apareciam em Varsóvia, onde editoras também encontravam mercados para obras originais de conhecidos escritores ídiches, bem como de traduções de ficção e não-ficção.

Mais que qualquer outro meio criativo, o teatro judeu falava às massas, e suas produções despertavam emoções intensas entre devotados freqüentadores. Historiadores do teatro creditam a Abraham Goldfaden a paternidade do teatro judeu, com sua criação de uma companhia em lasi, na Roménia, em 1874. Em 1885, quando Varsóvia se encontrava na esfera russa, Goldfaden levou seu teatro judeu alemão à Varsóvia e ali atuou por dois anos (a produção de Shulamith foi recebida com muito entusiasmo). A cidade recebeu também ocasionais apresentações de trupes de atores que interpretavam num dialeto alemão semelhante ao ídiche, já que peças em ídiche eram proibidas. O teatro judaico tinha de enfrentar não só as restrições impostas pelas autoridades russas como também tabus internos da comunidade em relação à língua, temas para espetáculos teatrais e o recato.

 Judeus inclinados à assimilação consideravam o teatro judaico um retrocesso, que distanciava os freqüentadores de teatro judeu do teatro de arte polonês. Na realidade, fontes históricas assinalam que o desenvolvimento da música e do teatro em Varsóvia no século XIX devia muito ao patrocínio de judeus ricos e a públicos judeus.

 Em 1905, a fundação da Companhia Literária trouxe aos judeus de Varsóvia um teatro ídiche permanente oficialmente sancionado. A companhia valia-se principalmente das obras dramáticas de Jacob Gordin e das interpretações de vários atores e atrizes excepcionais, entre eles a brilhante Esther Rachel Kaminska, que encantou e fascinou públicos judeus na Polônia, Rússia e Estados Unidos. Segundo conhecedores de teatro, esta atriz era especialista em retratar as personalidades e as vidas das heroínas de um modo que deixava o público encantado. As peças eram, em geral, lacrimejantes dramalhões, sobrecarregados de instrução moralista. Era um estilo que interessava um público confiante de que seu destino estava em grande parte sob seu próprio controle.

Muitos escritores, especialmente I. L. Peretz, mostraram um acentuado interesse no desenvolvimento do teatro ídiche. Formou-se unia sociedade para estimular o teatro, e levantaram-se fundos para dar apoio a teatro de alto nível artístico, com Peretz e Sholem Asch ativos na coleta de fundos. Embora nem sempre seus esforços fossem bem-sucedidos, o teatro manteve uma reputação de qualidade através da apresentação de obras de autores bem conhecidos.

O teatro ídiche de Varsóvia eram famoso pelo seu público entusiasta. Atores e companhias itinerantes, dos Estados Unidos e outros países, eram visitantes freqüentes. Em 1917, a trupe de Vilna visitou Varsóvia, introduzindo um nível mais alto de espetáculo teatral com seu tratamento moderno do drama ídiche. A trupe obteve grande sucesso em Varsóvia, e alguns dos seus membros lã permaneceram para estabelecer o que se tornou o mais destacado teatro da cidade no período de entreguerras.


A influencia dos judeus de Varsóvia, no período entre as guerras, também aumentou em decorrência da ruptura e declínio de status sentido pelos judeus sob o regime bolchevista na U.R.S.S., e do honor que despencou sobre os judeus da Alemanha com a ascensão do nazismo em 1933. Na Europa, o período de entreguerras começou com grandes esperanças e expectativas geradas pela legitimação da autodeterminação nacional e pelo reconhecimento dos direitos de minorias nacionais prometido pelo presidente Woodrow Wilson, e pela promessa proclamada na Declaração Balfour de 1917, que afirmava: "O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento de um lar nacional judeu na Palestina".

Porém, quanto maiores às esperanças, tanto maiores as decepções. Essa época viu a escalada do nacionalismo agressivo, o crescimento do totalitarismo e a predominância de um não contido racismo anti-semita. Nessas duas décadas de ingênuas expectativas e esperanças de curta duração tornou-se Varsóvia, com sua diversificada composição e seus contrastes, o foco de uma ilimitada e ampla atividade judaica. Naqueles dias de confusão à beira do abismo, ela foi virtual-mente a capital do povo judeu, especialmente devido ao isolamento e à desconexão dos judeus soviéticos.

 Muitos — talvez a maioria — dos economistas, líderes políticos, escritores, artistas, jornalistas, editores, historiadores, líderes, rabinos, eruditos talmúdicos e hassidim que alcançaram proeminência em Varsóvia no entreguerras não eram naturais da cidade, mas haviam chegado lá em resposta à sua atração magnética e a seu ambiente promissor, da mesma maneira como outros judeus eram atraídos a Paris ou a Nova Iorque. Muitos judeus chegaram a Varsóvia vindos das províncias, e muitos outros da fronteira oriental da Polônia e de partes da Rússia e Lituânia. Judeus que chegavam de cidades do leste encontravam forte oposição de círculos poloneses, que encaravam a chegada dos "Litvaks" (judeus lituanos) como uma invasão de estranhos que espalhavam o uso da língua e cultura russas e eram responsáveis pela "russificação" dos judeus locais, assim como os judeus de Nova Iorque deploravam a chegada de imigrantes europeu-orientais, falantes de ídiche entre 1881 e 1920. Considerável critica dos "Litvaks" também provinha de membros mais estabelecidos da comunidade, que ridicularizavam dialeto ídiche dos recém-chegados. Varsóvia, no entanto, servia não só de refúgio para proscritos como dava também aos que chegavam às suas portas a sensação de lar, provendo-os de amplas oportunidades para participar da vida cultural e comunitária. Pessoas comuns, vagueando em direção a Varsóvia ou que escapavam para a cidade vindos de longe, aclimatavam-se rapidamente aos costumes da cidade e da comunidade judaica local, tornando-se, sob todos os aspectos, verdadeiros cidadãos de Varsóvia.


Em sua saga A Família Moskat, Isaac Bashevis Singer revelou os pensamentos de um rabino de cidadezinha que veio a Varsóvia:
Rabi Dan Katzenellenbogen compreendeu agora o significado completo da frase talmúdica "Em cidades grandes a vida é difícil", mas Varsóvia tinha outros méritos. Aqui encontrou livros que não podia encontrar em sua cidadezinha de Binuv, ou mesmo em Lublin. A cidade era um lugar de estudo: onde quer que fosse, havia sinagogas, casas de estudo, shtieblach, banhos rituais. Coletores faziam as rondas e recolhiam as taxas semanais para ieshivot. Dos héders e escolas religiosas ouve-se a voz de escolares, por cuja própria vida o mundo existe. É verdade que aqui há também muitas coisas profanas, coisas modernas: homens de barba raspada, mulheres que conservam seu cabelo natural, estudantes que estudam nos gymnasia, toda espécie de sionistas, grevistas e simples ralé, que abandonaram seu judaísmo. Mas Rabi Dan não levou isso em conta. Gradativamente foi se tornando conhecido pelos eruditos de Varsóvia e eles vieram lhe dar as boas-vindas. Em sua própria cidadezinha, Rabi Dan não recebia um décimo do respeito que recebeu aqui, na estranha Varsóvia: aconteceu exatamente como estava escrito: "Sai da tua terra ... e te engrandecerei o nome."
A oportunidade de ingressar na vida judaica não se restringia apenas aos judeus religiosos. Um destacado membro do Bund socialista, Bernard Goldstein, pinta outra espécie de quadro, ao retornar a Varsóvia de suas viagens para o leste ao fim da Primeira Guerra Mundial:
Atraído ao vasto público dos adeptos do Bund ... fui ao "Clube" ... Era como uma colméia. Já anoitecia, e o clube estava apinhado. Estavam por toda parte, e em todos os cantos. Em todas as salas havia reuniões, o coro estava ensaiando, a sala de leitura, cheia de gente; mal se podia passar pelos corredores. Diversas pessoas me olhavam. Reconheci velhos amigos do trabalho clandestino e amigos novos, jovens, rostos irreconhecíveis ... uma das minhas primeiras tarefas foi ajudar a greve de funcionários da comunidade judaica e professores de suas escolas. Já tinham uma organização profissional, mas eram típicos trabalhadores de colarinho branco ("proletariado dos punhos engomados", como eram chamados) e completamente incapazes de conduzir uma greve.
 Nos subúrbios de Varsóvia, bairros e ruas inteiras eram habitados principal-mente por judeus, com maior concentração no setor norte da cidade. Em certas ruas, todos os prédios eram ocupados por judeus, excetuando o zelador. Judeus laicos e religiosos viviam lado a lado como vizinhos, freqüentemente pertencendo à mesma família. Em muitas famílias, o pai cumpria os preceitos religiosos e seguia todas as regras tradicionais de vestuário. A mãe usava peruca e fastidiosamente mantinha sua cozinha pura de acordo com a dietética judaica. Alguns adolescentes seguiam os passos dos seus pais, mas outros, que tinham "errado o caminho", tornavam-se sionistas, socialistas e até comunistas. Jovens devoravam avidamente ficção, livros teóricos, periódicos e jornais proibidos, fumavam no shabat e enchiam seus lares com intermináveis e ruidosas discussões políticas.

 A vida religiosa dos judeus de Varsóvia expressava-se no seu estilo de vida no lar, no cumprimento dos mandamentos, nas muitas instituições e serviços, tais como banhos rituais, os preceitos dietéticos judaicos, a rede de rabinos e dayans (juízes) e as muitas casas de orações. Nas sinagogas e shtiebels, os judeus religiosos e tradicionais se reuniam para rezar nos feriados religiosos, no shabat e dias úteis, e para intermináveis horas de estudo e discussão com amigos. Nos anos 30, havia trezentas dessas casas de oração, e quase todos que lá iam tinham um lugar cativo. Nos feriados, especialmente Rosh Hashaná e Yom Kipur, o estilo do culto era considerado muito importante e cantores com voz proeminente eram muito solicitados. A grande sinagoga da rua Tlomacka, que na realidade evoluía para tornar-se um dos mais esclarecidos locais de culto, atraía devotos tendentes à assimilação. Introduziram-se certas reformas, tais como proferir sermões em polonês, quando isso foi permitido pelo governo.

 As classes instruídas e os assimilacionistas estavam convictos de que, para terem qualquer influência, teriam de introduzir mudanças no sistema educacional, no traje e no estilo de vida, mas deveriam a todo custo abster-se de interferir no rigoroso ritual religioso. Assim, não estavam dispostos a instituir um judaísmo "reformista" ou "conservador", e a vida religiosa permaneceu ortodoxa. Mesmo nas sinagogas mais esclarecidas não foram introduzidos órgãos nos serviços religiosos, já que isso era considerado não-tradicional. Por outro lado, porém, serviços que incluíam um coro masculino foram considerados inteira-mente aceitáveis, e um componente importante do serviço era obviamente a música litúrgica vocal do cantor de sinagoga. Na grande sinagoga, oficiavam freqüentemente cantores bem conhecidos, como Gershon Sirota, que morreu no gueto de Varsóvia, e Moshe Kossovicki.

Os shtiebels hassídicos, além de serem casas de oração e estudo, eram também usados como alojamentos para os seguidores do rabino hassídico. As rezas no shtiebel eram altamente emocionais. Lá era palco de deliberações sobre literatura hassídica, homilias proferidas em dias  (Shavuot), e espontâneas cantorias e danças. Dentre as seitas hassídicas de Varsóvia, o grupo mais poderoso era o dos hassidim de Ger. A sede rabínica ficava na cidadezinha de Ger, não longe de Varsóvia. O local inteiro vivia sob o patrocínio da corte do rabino, e acorriam ao lugar milhares dos seus seguidores, especialmente em dias festivos e feriados. O Admor(2) de Ger, Rabi Abraham Mordecai Alter, afirmava que, a fim de combater a secularização e erosão da integridade religiosa dos judeus, era necessário mover-se em novas direções. A fundação do Agudath Israel e o papel dominante exercido pelo Admor e seus seguidores marcaram realmente a adoção de métodos até então desconhecidos por um campo religioso ortodoxo. Entre os rabinos hassídicos sediados em Varsóvia figurava Klonimus-Kalmish Schapira de Piaseczno, que deixou uma coleção dos seus sermões dos dias de gueto, publicada sob o título Fogo Sagrado.

Transcrição: Daniel Moratori - avidanofront.blogspot.com 
Fonte: GUTMAN, Israel - Resistência. Ed. Imago, 1995, pg 37-47


(1) YIVO — em idiche, Yídisher Visenshoftlihher Institui (Instituto para Pesquisa Judaica), fundado oit Vilna, em 1925, para o estudo científico da vida judaica e com especial ênfase nos judeus cai: Europa Oriental e seus descendentes falantes de idiche em todo o mundo. Ao irromper a Segunda Guerra Mundial, sua sede foi transferida para Nova Iorque (N. do T.).



(2) Admor (iniciais das palavras hebraicas Adonenu Morenu ve-Rabbenu, ou seja [não literalmente] “Nosso Mestre e Senhor") — titulo em geral dado, especialmente em contextos hebraicos, a rabinos hassídicos (N. do T).  


Ver também:
Os judeus de Varsóvia no entreguerras - Parte 1/3 Parte 2/2, Parte 3/3
A extensa discriminação aos judeus orientais(Ostjuden) pelos judeus-alemães - Link