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O Emissário do Vaticano Ramiro Marcone, terceiro da direita,Alojzije Stepinac, primeiro à direita,e Ante Pavelic, parcialmente obscurecido, extrema esquerda,no funeral em 1944 de Marko Dosen, o Presidente do Parlamento Ustasha. |
O regime brutal da Croácia Católica
Pacelli e os dirigentes da secretaria de Estado estavam convencidos, assim como os governos por toda a Europa, de que uma guerra entre a Alemanha e a União Soviética era apenas uma questão de tempo. Diante da possibilidade de a Europa cair sob o poder de Stalin, com provas abundantes da intenção soviética de suprimir as igrejas cristãs, a campanha balcânica de Mussolini, ela outubro de 1940, foi encarada por alguns membros da Cúria com um certo otimismo. Afinal, nesse contexto, a Iugoslávia era considerada o último baluarte antes da Itália e o Mediterrâneo. O fracasso de Mussolini em derrotar os gregos, no entanto, significava que Hitler devia partir em seu socorro; e para que ele tivesse acesso à Grécia, era preciso persuadir a Iugoslávia a aderir ao Eixo. O pacto entre Alemanha, Itália e Iugoslávia foi assinado em Viena, em 25 de março de 1941. Dois dias depois, um grupo de nacionalistas sérvios tomou o poder em Belgrado, aboliu a regência e anunciou que a Iugoslávia seria aliada das democracias ocidentais. Churchill declarou em Londres que os iugoslavos haviam recuperado sua "alma". Em represália, Hitler invadiu a Iugoslávia em 6 de abril, em conjunto com a ofensiva na Grécia. Bombardeou a cidade aberta de Belgrado, matando cinco mil pessoas. Quando a Wehrmacht entrou em Zagreb, em 10 de abril, os fascistas croatas tiveram permissão para proclamar a independência da Croácia. No dia seguinte, a Itália e a Hungria (outro Estado fascista) juntaram forças a Hitler para a divisão do "bolo" iugoslavo. Em 12 de abril, Hitler apresentou seu plano para a divisão da Iugoslávia, concedendo a Posição de "ariana" a uma Croácia independente, com a liderança de Ante Pavelic, que aguardava os acontecimentos, sob o patrocínio de Mussolini. O grupo de Pavelic, o Ustashe (do verbo ustati, significando "rebelar-se"), opusera-se à formação do reino eslavo meridional da Iugoslávia, depois da Primeira Guerra Mundial. Sempre planejara atos de sabotagem do refúgio seguro da Itália; fora Pavelic quem tramara o assassinato do rei Alexandre, em 1934. Mussolini concedera a Pavelic o uso de centros de treinamento numa remota ilha eólia, além de acesso à Rádio Bati, para transmissões de propaganda através do Adriático.
Foi esse o panorama da campanha de terror e extermínio realizada pelo Ustashe da Croácia contra dois milhões de cristãos ortodoxos sérvios e uma quantidade menor de judeus, ciganos e comunistas, entre 1941 e 1945. O processo de "limpeza étnica", antes que esse tempo hediondo entrasse em voga, foi urna tentativa de criar urna Croácia católica "pura", por meio de conversões forçadas, deportações e extermínio em massa. Os atos de tortura e assassinato foram tão terríveis que até mesmo os calejados soldados alemães manifestaram seu horror. Mesmo em comparação com o recente derramamento de sangue na Iugoslávia, na ocasião em que este livro foi escrito, a agressão de Pavelic contra os sérvios ortodoxos continua a ser um dos mais terríveis massacres civis da História.
A importância desses acontecimentos para esta narrativa baseia-se em três considerações: o conhecimento das atrocidades pelo Vaticano, a omissão de Pacelli em usar sua influência para interferir e a cumplicidade que representou na Solução Final sendo planejada no Norte da Europa.
O legado histórico que sustentou a formação do NDH (Nezaviss na Drzava Hrvatska), ou Estado Independente da Croácia, foi uma combinação de lealdade antiga ao papado, com mais de 1.300 anos, e um senso de profundo ressentimento contra os sérvios por injustiças passadas e presentes. Os nacionalistas croatas acalentavam muito rancor contra a ascendência sérvia, que os excluíra de várias profissões e da igualdade de oportunidades na educação. Os sérvios eram culpados, os croatas assim percebiam, de favorecer a fé ortodoxa, encorajar o cisma entre católicos e sistematicamente colonizar áreas católicas com sérvios ortodoxos. Tanto sérvios quanto croatas encontravam uma equivalência entre identidade étnica e religiosa — sérvio ortodoxo contra croata católico. Ao mesmo tempo, os judeus na região foram condenados por causa da raça, além de suas ligações com o comunismo e a maçonaria, e um suposto estímulo à prática do aborto.
Pacelli endossara com entusiasmo o nacionalismo croata e confirmara a percepção da História pelo Ustashe, em novembro de 1939, quando unia peregrinação nacional foi a Roma para promover a causa de um mártir franciscano croata, Nicola Tavelic. O primaz croata, arcebispo. Alojzije Stepinac, representou os Peregrinos e fez um discurso para o papa. Na resposta, Pacelli um epíteto que fora aplicado aos croatas pelo papa Leão X: "Posto avançado do cristianismo" — era como se os sérvios, religiosos ortodoxos de um antigo cisma de Roma, não tivessem o direito de se intitular cristãos. "A esperança de um futuro melhor parece sorrir para vocês", declarou Pacelli„ com unia terrível ironia, "um futuro em que as relações entre a Igreja e o Estado em seu país serão reguladas em ação harmoniosa em benefício de ambos”(12).
As fronteiras do novo Estado abrangiam a Croácia, a Eslovênia, a Bósnia Herzegovina e uma grande parte da Dalmácia. De uma população de cerca de 6.700.000 habitantes, 3.300.000 eram croatas (e, portanto, católicos), 2.200.000 sérvios ortodoxos 750 mil muçulmanos, 70 mil protestantes e cerca de 45 mil judeus. A existência da minoria germânica protestante não representava qualquer problema para a liderança do Ustashe; também não, o que parece estranho, o grande enclave de muçulmanos. Mas os sérvios ortodoxos se defrontaram com "soluções radicais", assim como os judeus, que foram de imediato marcados para a eliminação.
Em 25 de abril de 1941, Pavelic determinou a proibição de todas as publicações, particulares e públicas, em alfabeto cirílico (usado pelos sérvios ortodoxos). Em maio, a legislação anti-semita foi promulgada, definindo os judeus em termos racistas. Eles foram inclusive proibidos de casar com arianos. Foi iniciado o movimento para a "arianização" da burocracia governamental, as profissões liberais e o capital judeu. No mesmo mês, os primeiros judeus foram deportados de Zagreb para um campo de concentração em Danica(13). Em junho, as escolas primárias sérvias ortodoxas foram fechadas.
Nessa situação nova e perigosa para os sérvios, surgiu uma questão: se a vida se tornava insuportável por causa da fé ortodoxa, por que não procurar a conversão ao catolicismo? Semanas depois da fundação do Estado croata, os sacerdotes católicos estavam acolhendo os sérvios ortodoxos na Igreja católica. Em 14 de julho de 1941, no entanto, antecipando sua política de conversão seletiva e o objetivo eventual de genocídio, o ministro da Justiça da Croácia determinou aos bispos da nação que "o governo croata não tenciona aceitar dentro da Igreja católica padres ou professores, em suma, os intelectuais — inclusive os ricos comerciantes e artesãos ortodoxos, porque normas específicas para eles serão promulgada mais tarde. Também não podemos permitir que eles prejudiquem o prestígio do catolicismo"(14). O destino tácito desses sérvios ortodoxos, excluídos de antemão do iminente programa de conversão compulsória, era a deportação e extermínio. Mas, na chacina enlouquecida que se seguiu, nem mesmo o mo católico podia garantir imunidade.
Desde o início, os atos e declarações públicas envolvendo a limpeza étnica e os programas anti-semitas foram bem conhecidos do episcopado católico e da Ação Católica, a associação Lie1 que Pacelli promoveu com tanto vigor, como núncio papal 11.11 Alemanha e cardeal-secretário de Estado. Essas medidas racistas e anti-semitas, portanto, eram também conhecidas pela Santa Sé __ e por Pacelli, quando recebeu Pavelic no Vaticano. Além disso, esses atos eram conhecidos na própria ocasião em que laços diplomáticos clandestinos estavam sendo forjados entre a Croácia e a Santa Sé. Um aspecto fundamental dessa guerra essencialmente religiosa foi à apropriação pelos croatas católicos de igrejas desocupadas ou requisitadas aos ortodoxos: a questão foi discutida pela Cúria e normas de conduta foram elaboradas.
Mas desde o início houve outras atrocidades, as notícias a respeito se espalhando de boca em boca(15). Pavelic, logo ficou patente, não era exatamente um equivalente de Himmler e Heydrich, pois não partilhava a aptidão fria dos dois para a burocracia da matança sistemática. Em vez disso, a liderança do Ustashe lançou-se a massacres com um barbarismo cruel e casual, que tem poucos paralelos na História.
O escritor italiano Cano Falconi foi incumbido, no início da década de 1960, de escrever a história do massacre dos sérvios, judeus e outros pelos croatas. Suas pesquisas em arquivos iugoslavos e nas fontes disponíveis do Vaticano na ocasião foram meticulosas"(16). Ele descobriu os exemplos seguintes de atrocidades disseminadas, cometidas na Croácia a partir da primavera de 1941.
Em 28 de abril, um bando do Ustasha atacou seis aldeias no distrito de Bjelovar e levou 250 homens, inclusive um professor e um padre Ortodoxo. As vítimas foram obrigadas a escavar uma vala, depois foram amarradas com arame e enterradas vivas. Poucos dias depois, num lugar chamado Otocac, o Ustashe prendeu 331 sérvios, inclusive o padre ortodoxo local e seu filho. Mais uma vez, as vítimas foram obrigadas a escavar as próprias sepulturas, antes de serem retalhadas até a morte com machados. Os criminosos deixaram o padre e seu filho para o final. O padre foi forçado a recital: oração para os agonizantes, enquanto o filho era retalhado. Depois o padre foi torturado, os cabelos e a barba arrancados, os olhos tirados das órbitas. No final, foi esfolado vivo.
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Conversão forçada dos sérvios ortodoxos à fé católica romana |
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Civis sérvios forçados a se converter ao catolicismo pela Ustaše em Glina |
Em 14 de maio, num lugar chamado Glina, centenas de sérvios foram levados a urna igreja para assistirem a uma missa obrigatória de ação de graças pela criação do NDH. Depois que os sérvios estavam lá dentro, um bando do Ustashe entrou, com facões e machados. Pediram a todos os presentes que apresentassem o certificado de conversão ao catolicismo. Apenas dois tinham os documentos exigidos. Foram soltos. As portas foram trancadas e os outros foram massacrados.
Quatro dias depois do massacre de Glina, Pavelic, que se intitulava Poglavnik ou Führer foi a Roma para assinar (por pressão de Hitler) um tratado com Mussolini, concedendo à Itália distritos e cidades croatas na costa da Dalmácia. Nessa mesma visita, Pavelic teve uma audiência "devocionista" com Pio XII, no Vaticano. O Estado Independente da Croácia recebeu assim o reconhecimento de fato da Santa Sé. O abade Ramiro Marcone, do mosteiro beneditino de Montevergine, foi designado para legado apostólico em Zagreh. Não há provas de que Pacelli e a secretaria de Estado tivessem conhecimento das atrocidades que já haviam começado na Croácia na primavera de 1941. Parece evidente que o rápido reconhecimento do fato (o Vaticano evitava o reconhecimento de novos Estados em tempo de guerra) devia-se mais à posição da Croácia como um bastião contra o comunismo do que urna aceitação à sua política brutal. De qualquer forma, sabia-se desde o início que Pavelic era um ditador totalitário, fantoche de Hitler e Mussolini, que promulgara urna série de leis racistas e anti-semitas, e que se empenhava na conversão compulsória de ortodoxos ao cristianismo católico. Acima de tudo, Pacelli tinha noção de que o novo Estado era como disse Jonathan Steinberg, "não o resultado de um heroico levante do povo de Deus, mas uma decorrência da intervenção externa". O Estado Independente da Croácia, como o mundo inteiro sabia resultara da violenta e ilegítima invasão e anexação do reino da Iugoslávia (que mantinha relações diplomáticas ri agora diplomáticas com o Vaticano) por Hitler e Mussolini; e agora Pacelli apertava a mão de Pavelic, concedia-lhe a bênção papal.
Demoraria algum tempo para que a Santa Sé soubesse das atrocidades. Mas os detalhes do massacre dos sérvios e da virtual eliminação dos judeus e dos ciganos eram conhecidos desde o inicio pelo clero e pelo episcopado católico croata. Na verdade, o Clero muitas vezes teve uma participação destacada(17).
A contagem final quase desafia a credibilidade. Pelos cálculos confiáveis mais recentes, 487.000 sérvios ortodoxos e 27.000 ciganos foram massacrados entre 1941 e 1945 no Estado Independente da Croácia. Além disso, cerca de 30.000 de uma população de 45.000 judeus foram mortos: de 20 000 a 25.000 nos campos de extermínio do Ustashe e outros 7.000 deportados para as câmaras de gás(18). Como foi possível que, apesar do relacionamento de poder autoritário entre o papado e a Igreja local — um relacionamento de poder que Pacelli se empenhara em consolidar —, não houvesse nenhuma tentativa do Vaticano para impedir às matanças, as conversões forçadas, a apropriação de bens ortodoxos? Como foi possível, quando as atrocidades se tornaram do conhecimento de todos no Vaticano. Como vamos demonstrar que Pacelli não dissociasse no mesmo instante a Santa Sé das ações do Ustashe, condenando os criminosos?
Notas(enumeradas conforme no livro):
13 - Diário de Osborne citado em Chadwick, Britain and the vatican...,p.206.
14 - Tittmann's papers citado em Chadwick, Britain and the vatican...,p.207.
15 - Chadwik, Britain and the vatican...,p.208-209.
16 - Carta de Osborne a McEwan, 31 de julho de 1942.
17 - Carta de Osborne a McEwan, 25 de agosto de 1942.
18 - Carta de Osborne a McEwan, 18 de setembro de 1942.
Transcrição: Daniel Moratori (avidanofront.blogspot.com)
Fonte: CORNWELL, John - O Papa de Hitler - A historia secreta de Pio XII, Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p. 281-286.