No período entre as duas guerras mundiais, os judeus poloneses, e especialmente os de Varsóvia, desempenharam um papel central na vida judaica em todo o mundo. Superada apenas por Nova Iorque, no que diz respeito à quantidade de judeus, Varsóvia continha uma vida judaica que era, ao mesmo tempo, tradicional e criativa, religiosamente conservadora e nacionalista. Apesar do intenso movimento na cultura polonesa, os judeus da Polônia se viam antes como parte do povo judeu disperso pelo mundo do que como parte integrante daquela sociedade.
De 1918 em diante, Varsóvia foi a capital de uma Polônia independente, abrangendo áreas que por mais de um século haviam sido ocupadas por potências estrangeiras decididas a solapar o nacionalismo polonês. Sob ocupação russa, Varsóvia tinha sido o alvo principal de uma política que visava a erradicar qualquer vestígio de nacionalismo polonês. Não obstante, e a despeito dos esforços russos, a geração mais jovem permaneceu politicamente orientada e nacionalista. Varsóvia foi também palco de impulso e desenvolvimento econômico.
Assim como na Europa Ocidental, empreendedores judeus desempenharam um papel desbravador em bancos, ferrovias, finanças internacionais e novas indústrias. Famílias judaicas tiveram considerável participação no estabelecemento de uma economia capitalista e sua expansão por toda a Polônia. Muitos desses pioneiros econômicos eram rodeados de assistentes e agentes leais, que em sua maioria eram judeus. A semelhança dos judeus da "parte alta" da cidade de Nova Iorque, alguns membros dessas famílias de destaque se converteram ao cristianismo quando ainda jovens, enquanto outros, da segunda ou terceira geração, se assimilaram na aristocracia e burguesia polonesas. Outros permaneceram na comunidade judaica.
O impacto desses indivíduos e famílias se estendeu ao desenvolvimento e progresso de instituições artísticas e culturais, jornalismo e editoras. Na filantropia, judeus contribuíram amplamente para a educação e a fundação de hospitais e instituições públicas de beneficência. Seus generosos donativos permitiram que judeus que pensavam da mesma maneira progredissem na sociedade polonesa, mas seu progresso, no entanto, freqüentemente atenuava seus vínculos, sua utilidade e sua lealdade para com a comunidade judaica. Ainda assim, quando essas famílias estavam em boa situação, seus membros contribuíam generosamente para as necessidades públicas da população polonesa em geral ou dos judeus. Alguns deles — mas de modo algum todos — também eram ativos em questões da comunidade judaica.
O crescimento de Varsóvia como comunidade judaica influente resultou da migração de judeus durante várias gerações. Em 1781, quando a Polônia estava prestes a perder sua independência, havia em Varsóvia 2.609 judeus. Em Praga, um subúrbio da cidade na margem oriental do rio Vístula, a comunidade judaica totalizava 24 indivíduos. No limiar do século XX, em 1897, esta mesma comunidade seria formada por cerca de 219.128 judeus. Ao irromper a Primeira Guerra Mundial, os judeus de Varsóvia constituíam 38% de toda a população da cidade, percentual esse que se tornaria ainda maior quando refugiados e pessoas deslocadas acorreram a Varsóvia durante a guerra. Na república independente da Polônia dos anos de entreguerras, o número de judeus vivendo em Varsóvia cresceu em termos globais, mas declinou em termos relativos. Em 1921, a comunidade judaica abrangia 310.300 pessoas, ou seja, 33% dos 936.700 habitantes de Varsóvia. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, havia em Varsóvia uns 375 mil judeus, e eles compunham 29,1% dos 1.289.000 habitantes da cidade.
Os números por si só não refletem a importância da comunidade judaica de Varsóvia no entreguerras. A Varsóvia judaica não possuía a tradição e a distinção que caracterizavam outras comunidades judaicas da Polônia, tais como Cracóvia, Lublin e Lvov, onde judeus haviam vivido por gerações. Varsóvia não tinha prédios antigos e nem a aura de gloriosas lembranças, vestígios de um passado influente não havia sinagogas antigas como a de Cracóvia; nenhuma que tivesse sido lar de eruditos mundialmente famosos. No cemitério judeu de Varsóvia, a lápide mais velha datava de 1807. Havia, não obstante, amplas oportunidades de recém-chegados causarem impacto, e tinha-se a sensação de uma comunidade que ia adquirindo personalidade própria. As fachadas relativamente novas de Varsóvia e o seu rápido crescimento eram fontes de receptividade. Habitantes novos e visitantes casuais podiam se sentir bem-vindos. A mudança social predominava sobre a estabilidade.
Devido, em parte, à rejeição pela sociedade polonesa desses assimilacionistas em potencial, idéias que vinham do leste — regiões da Rússia e Lituânia, onde a cultura nacionalista judaica já havia adquirido variadas formas de organização e maturidade ideológica — iam ganhando influência cada vez maior na comunidade dos judeus de Varsóvia. A vida judaica caracterizava-se por um grande número de partidos políticos, instituições parcialmente coincidentes, debates públicos violentos e rixas particulares.
Três movimentos judaicos politicamente realistas e perspicazes emergiram às vésperas da independência da Polônia: o sionismo, com suas várias orientações; o Bund e suas organizações; e o Agudath Israel, que unia elementos ortodoxos, hassídicos e mitnaged (opositores ortodoxos do hassidismo) do judaísmo polonês. Todos os três movimentos viam os judeus como uma nação distinta, separada dos poloneses, muito embora suas definições divergentes sobre o que constituía uma nação distinta levassem por vezes os três grupos a uma amarga rivalidade.
O movimento sionista na Polônia adotou dois princípios fundamentais: o reestabelecimento de judeus na Palestina e os direitos fundamentais de judeus vivendo na Diáspora. Os sionistas acreditavam que um renascimento nacional na Palestina também teria de prover os judeus na Diáspora, fora da Palestina, durante sua aparentemente longa estada na Europa, com o sentido da unidade nacional. Na Polônia, o sionismo empreendeu no âmbito da sociedade judaica em Diáspora uma intensa atividade como "trabalho para o presente", tendo como meta futura a colonização na Palestina (muito embora no período de entreguerras o Hechalutz e outros movimentos juvenis sionistas estivessem ativamente engajados em incentivar a imigração na Palestina como uma "atividade dos dias de hoje"). O hebraico foi ressuscitado como língua viva, mas o ídiche continuou sendo a língua de trabalho do movimento.
|
Reunião ao ar livre da Organização da Juventude bundista,Varsóvia, junho de 1932. |
O Agudath Israel -
o partido ortodoxo que incluía grandes grupos hassídicos — adotou certos
aspectos de organização política moderna semelhantes aos de outros partidos
políticos, não obstante sua vinculação à tradição e sua meticulosa observância
das normas judaicas. Esses aspectos incluíam representação em instituições de
governo e limitadas reformas no sistema educacional. O Agudath Israel possuía uma imprensa, líderes políti-cos e um
sistema de patronagem próprios. Os judeus ortodoxos, em sua maioria, rejeitavam
o sionismo porque este buscava o retorno dos judeus à sua terra através de
esforço humano, e não por decreto divino. O Agudath
Israel, quietista em sua orientação religiosa, só acreditava no
renascimento da nação judaica como um ato divino.
Apenas um pequeno
grupo desproporcionalmente influente de judeus religiosos, organizados no
movimento Mizrachi, punha-se ao lado
dos sionistas laicos. Advogavam o sionismo e eram opostos ao Agudath Israel, e também se opunham aos
sionistas laicos, com os quais, entretanto, trabalhavam de perto e
cooperativamente, buscando estabelecer um caráter religioso e cultural nos
esforços sionistas.
Os princípios
orientadores da ideologia política adotada pelos judeus poloneses no período de
entreguerras admitiam que o judaísmo era não só uma religião definida por seus
rituais, crenças e práticas, mas também que os judeus constituíam uma entidade
nacional, buscando política, educação e cultura nacionalistas.
Em Varsóvia, localizavam-se sedes de partidos políticos,
representantes e instituições estatais; o centro administrativo de organizações
de beneficência e auto-ajuda; o eixo de vários tipos de redes educacionais e
culturais, grupos de escritores, e admiradores das línguas ídiche e hebraica.
Jornais e livros eram, em sua maioria, publicados em Varsóvia, para serem
distribuídos através da Polônia e enviados para o exterior.
Poder treinar para
as profissões liberais era uma atração que levou muitos estudantes judeus de
Varsóvia e de outras partes do país a estudar em escolas de ensino superior. Em
alguns anos, os judeus, inclusive muitas mulheres, constituíam uma substancial
percentagem dos formados de todas as escolas secundárias e universidades.
Diplomados judeus procuravam as universidades para poder continuar seus estudos
de medicina, farmácia, direito, humanidades, química, língua e literatura
polonesas. Mas o percentual de judeus na educação anos de superior entrou em
constante declínio no período entreguerras. Nos 1921-22, judeus formavam 24,6% de todos os estudantes; em
1925-26, 20,7%; em 1934-35, 14,9%; e em 1937-38, 9,9%.
Nos últimos anos de independência polonesa anteriores à
Segunda Guerra Mundial, o número de estudantes judeus preencheu o limite
estabelecido por quotas, uma política nunca formalmente autorizada mas
executada na prática. Levando em conta que a percentagem de estudantes de áreas
urbanas era bem maior que a de estudantes de distritos de províncias, parecia
que o número de estudantes judeus decrescia conforme a camada da população a
que pertenciam.
Estudantes judeus
organizaram sua própria associação e fundaram a Casa dos Acadêmicos, um
pensionato para trezentos estudantes e uma sala de reuniões para muitos outros.
De 1928 até irromper a guerra, o historiador judeu e líder sionista Yitzhak
Schiper foi seu último diretor. Instituição abrangente de estudantes judeus e
organizações judaicas, cuidava não só da defesa de estudantes atacados por
grupos malévolos de jovens poloneses, mas também da promoção de atividades
culturais e eventos esportivos.
Em todos os níveis, até mesmo nas escolas independentes, os
estudos eram feitos na língua polonesa. Alguns erroneamente consideram esse
extenso uso do polonês, especialmente como idioma cotidiano dos jovens, como
indício de uma assimilação que se espalhava entre os judeus em geral e
particularmente entre os de Varsóvia. A assimilação, porém, não atraía os
judeus. Ao contrário, ela estava em declínio na Polônia de entreguerras. Judeus
falavam polonês e eram ávidos leitores de literatura polonesa e de autores
poloneses, que freqüentemente retratavam judeus de maneira muito positiva.
Muitos jovens também apoiaram a luta da Polônia pela independência. Ao mesmo
tempo, no entanto, estavam conscientes do seu judaísmo, filiavam-se a organizações
judaicas, e pensavam em termos do futuro judaico. Diferentemente de muitos
judeus alemães, que se consideravam alemães, os judeus poloneses absorviam a
cultura polonesa mas não se assimilavam nela. Em sua maior parte, a assimilação
de judeus de fala Polonesa não era mais comum do que a assimilação dos
hassídicos falantes de inglês do Brooklyn.
A contribuição dos
judeus e daqueles de origem judaica à literatura polonesa, particularmente à
poesia, no período de entreguerras foi característica. Ao contrário dos
romancistas judeus americanos no período pós-Segunda Guerra Mundial, tais como
Saul Bellow, Philip Roth e Bernard Malamud, poucos dos principais escritores de
origem judaica tratavam de temas judaicos, e alguns até s converteram ao cristianismo. Mas mesmo
aqueles que usavam temas judaicos retratavam judeus como figuras fora do seu
próprio mundo espiritual.
A despeito da instabilidade política e da debilidade
econômica, a cultura judaica em Varsóvia possuía uma vitalidade única. Varsóvia
era o maior e mais importante centro de atividades criativas e culturais tanto
em hebraico quanto em ídiche. O hebraico, a língua sagrada, lembrava os dias em
que os judeus estavam cm seu próprio país, o tempo da maior criatividade do
povo judeu. Era a língua do Livro e de oração — mas o hebraico se tornara uma
obscurecida lembrança nas mentes e línguas dos judeus. O renascimento do
hebraico: Diáspora, no século XIX, foi acompanhado por tentativas de renovar a
língua na literatura e em periódicos. Embora popular nos círculos intelectuais,
não cativou as massas para se tornar uma língua do povo. Só quando o hebraico
foi adotado pelo movimento sionista e se tornou parte essencial do renascimento
nacional e social, transformou-se de um símbolo em uma língua viva. Os
sionistas foram os principais advogados da língua hebraica. Em contraste, o
Bund se opunha ao hebraico, e certos elementos do Agudath Israel eram contrários à laicização da língua sacra.
Na Diáspora,
especialmente na Polônia, o ídiche continuou sendo a língua do povo. No
entreguerras as línguas judaicas floresceram na Polônia, Varsóvia em
particular, mesmo quando estavam sendo abandonadas na União Soviética e no
Ocidente. Fora dos círculos de imigrantes nos Estados Unidos, o uso das línguas
diminuiu. Na última década do século XIX, o ídiche atingiu a maturidade e, no
século XX, literatura, jornais e outras publicações se desenvolveram cultural e
comercialmente.
Os escritores e poetas, jornalistas e editores de Varsóvia
não eram, em sua maioria, naturais da cidade, e sim a ela atraídos de distantes
distritos do leste, da Lituânia e das pequenas cidades provinciais da Polônia.
O crescimento e a consolidação de Varsóvia como um eixo cultural deveu-se não
só ao fato de sediar a maior população judaica urbana da Europa, mas também às
suas estimulantes tendências social-nacionalistas e seus mutáveis estilos de
vida.
Na Polônia independente havia uma abundância de diários e
semanários judeus, a maioria em ídiche, mas alguns em polonês e hebraico. Em
acréscimo à imprensa comercial, também eram publicados jornais diários de
partidos. Nos anos que precederam de pouco a Segunda Guerra Mundial havia em
toda a Polônia, de acordo com o YIVO(1), 230 jornais em ídiche, incluindo 27
diários, 100 semanários, 24 publicações quinzenais e 58 periódicos mensais.
Tais números, evidentemente, incluíam publicações de vida curta assim como
per-manentes. A maior parte dos jornais principais apareciam em Varsóvia, onde
editoras também encontravam mercados para obras originais de conhecidos
escritores ídiches, bem como de traduções de ficção e não-ficção.
Mais que qualquer outro meio criativo, o teatro judeu falava às massas, e suas produções despertavam emoções intensas entre devotados
freqüentadores. Historiadores do teatro creditam a Abraham Goldfaden a
paternidade do teatro judeu, com sua criação de uma companhia em lasi, na
Roménia, em 1874. Em 1885, quando Varsóvia se encontrava na esfera russa,
Goldfaden levou seu teatro judeu alemão à Varsóvia e ali atuou por dois anos (a
produção de Shulamith foi recebida com muito entusiasmo). A cidade recebeu
também ocasionais apresentações de trupes de atores que interpretavam num
dialeto alemão semelhante ao ídiche, já que peças em ídiche eram proibidas. O
teatro judaico tinha de enfrentar não só as restrições impostas pelas
autoridades russas como também tabus internos da comunidade em relação à
língua, temas para espetáculos teatrais e o recato.
Judeus inclinados à
assimilação consideravam o teatro judaico um retrocesso, que distanciava os
freqüentadores de teatro judeu do teatro de arte polonês. Na realidade, fontes
históricas assinalam que o desenvolvimento da música e do teatro em Varsóvia no
século XIX devia muito ao patrocínio de judeus ricos e a públicos judeus.
Em 1905, a fundação da
Companhia Literária trouxe aos judeus de Varsóvia um teatro ídiche permanente
oficialmente sancionado. A companhia valia-se principalmente das obras
dramáticas de Jacob Gordin e das interpretações de vários atores e atrizes
excepcionais, entre eles a brilhante Esther Rachel Kaminska, que encantou e
fascinou públicos judeus na Polônia, Rússia e Estados Unidos. Segundo
conhecedores de teatro, esta atriz era especialista em retratar as
personalidades e as vidas das heroínas de um modo que deixava o público
encantado. As peças eram, em geral, lacrimejantes dramalhões, sobrecarregados
de instrução moralista. Era um estilo que interessava um público confiante de
que seu destino estava em grande parte sob seu próprio controle.
Muitos escritores, especialmente I. L. Peretz, mostraram um
acentuado interesse no desenvolvimento do teatro ídiche. Formou-se unia
sociedade para estimular o teatro, e levantaram-se fundos para dar apoio a
teatro de alto nível artístico, com Peretz e Sholem Asch ativos na coleta de
fundos. Embora nem sempre seus esforços fossem bem-sucedidos, o teatro manteve
uma reputação de qualidade através da apresentação de obras de autores bem
conhecidos.
O teatro ídiche de Varsóvia eram famoso pelo seu público
entusiasta. Atores e companhias itinerantes, dos Estados Unidos e outros
países, eram visitantes freqüentes. Em 1917, a trupe de Vilna visitou Varsóvia,
introduzindo um nível mais alto de espetáculo teatral com seu tratamento
moderno do drama ídiche. A trupe obteve grande sucesso em Varsóvia, e alguns
dos seus membros lã permaneceram para estabelecer o que se tornou o mais
destacado teatro da cidade no período de entreguerras.
A influencia dos judeus de Varsóvia, no período entre as
guerras, também aumentou em decorrência da ruptura e declínio de status sentido
pelos judeus sob o regime bolchevista na U.R.S.S., e do honor que despencou
sobre os judeus da Alemanha com a ascensão do nazismo em 1933. Na Europa, o
período de entreguerras começou com grandes esperanças e expectativas geradas
pela legitimação da autodeterminação nacional e pelo reconhecimento dos
direitos de minorias nacionais prometido pelo presidente Woodrow Wilson, e pela
promessa proclamada na Declaração Balfour de 1917, que afirmava: "O
governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento de um lar
nacional judeu na Palestina".
Porém, quanto maiores às esperanças, tanto maiores as
decepções. Essa época viu a escalada do nacionalismo agressivo, o crescimento
do totalitarismo e a predominância de um não contido racismo anti-semita.
Nessas duas décadas de ingênuas expectativas e esperanças de curta duração
tornou-se Varsóvia, com sua diversificada composição e seus contrastes, o foco
de uma ilimitada e ampla atividade judaica. Naqueles dias de confusão à beira
do abismo, ela foi virtual-mente a capital do povo judeu, especialmente devido
ao isolamento e à desconexão dos judeus soviéticos.
Muitos — talvez a
maioria — dos economistas, líderes políticos, escritores, artistas,
jornalistas, editores, historiadores, líderes, rabinos, eruditos talmúdicos e
hassidim que alcançaram proeminência em Varsóvia no entreguerras não eram
naturais da cidade, mas haviam chegado lá em resposta à sua atração magnética e
a seu ambiente promissor, da mesma maneira como outros judeus eram atraídos a
Paris ou a Nova Iorque. Muitos judeus chegaram a Varsóvia vindos das
províncias, e muitos outros da fronteira oriental da Polônia e de partes da
Rússia e Lituânia. Judeus que chegavam de cidades do leste encontravam forte
oposição de círculos poloneses, que encaravam a chegada dos "Litvaks"
(judeus lituanos) como uma invasão de estranhos que espalhavam o uso da língua
e cultura russas e eram responsáveis pela "russificação" dos judeus
locais, assim como os judeus de Nova Iorque deploravam a chegada de imigrantes
europeu-orientais, falantes de ídiche entre 1881 e 1920. Considerável critica
dos "Litvaks" também provinha de membros mais estabelecidos da
comunidade, que ridicularizavam dialeto ídiche dos recém-chegados. Varsóvia, no
entanto, servia não só de refúgio para proscritos como dava também aos que
chegavam às suas portas a sensação de lar, provendo-os de amplas oportunidades
para participar da vida cultural e comunitária. Pessoas comuns, vagueando em
direção a Varsóvia ou que escapavam para a cidade vindos de longe,
aclimatavam-se rapidamente aos costumes da cidade e da comunidade judaica
local, tornando-se, sob todos os aspectos, verdadeiros cidadãos de Varsóvia.
Em sua saga A Família Moskat, Isaac Bashevis Singer revelou
os pensamentos de um rabino de cidadezinha que veio a Varsóvia:
Rabi Dan Katzenellenbogen compreendeu agora o significado
completo da frase talmúdica "Em cidades grandes a vida é difícil",
mas Varsóvia tinha outros méritos. Aqui encontrou livros que não podia
encontrar em sua cidadezinha de Binuv, ou mesmo em Lublin. A cidade era um
lugar de estudo: onde quer que fosse, havia sinagogas, casas de estudo, shtieblach, banhos rituais. Coletores
faziam as rondas e recolhiam as taxas semanais para ieshivot. Dos héders e escolas religiosas ouve-se a
voz de escolares, por cuja própria vida o mundo existe. É verdade que aqui há
também muitas coisas profanas, coisas modernas: homens de barba raspada,
mulheres que conservam seu cabelo natural, estudantes que estudam nos gymnasia, toda espécie de sionistas,
grevistas e simples ralé, que abandonaram seu judaísmo. Mas Rabi Dan não levou
isso em conta. Gradativamente foi se tornando conhecido pelos eruditos de
Varsóvia e eles vieram lhe dar as boas-vindas. Em sua própria cidadezinha, Rabi
Dan não recebia um décimo do respeito que recebeu aqui, na estranha Varsóvia:
aconteceu exatamente como estava escrito: "Sai da tua terra ... e te
engrandecerei o nome."
A oportunidade de ingressar na vida judaica não se restringia
apenas aos judeus religiosos. Um destacado membro do Bund socialista, Bernard Goldstein, pinta outra espécie de quadro,
ao retornar a Varsóvia de suas viagens para o leste ao fim da Primeira Guerra
Mundial:
Atraído ao vasto público dos adeptos do Bund ... fui ao "Clube" ... Era como uma colméia. Já
anoitecia, e o clube estava apinhado. Estavam por toda parte, e em todos os
cantos. Em todas as salas havia reuniões, o coro estava ensaiando, a sala de
leitura, cheia de gente; mal se podia passar pelos corredores. Diversas pessoas
me olhavam. Reconheci velhos amigos do trabalho clandestino e amigos novos,
jovens, rostos irreconhecíveis ... uma das minhas primeiras tarefas foi ajudar
a greve de funcionários da comunidade judaica e professores de suas escolas. Já
tinham uma organização profissional, mas eram típicos trabalhadores de
colarinho branco ("proletariado dos punhos engomados", como eram chamados)
e completamente incapazes de conduzir uma greve.
Nos subúrbios de
Varsóvia, bairros e ruas inteiras eram habitados principal-mente por judeus,
com maior concentração no setor norte da cidade. Em certas ruas, todos os
prédios eram ocupados por judeus, excetuando o zelador. Judeus laicos e
religiosos viviam lado a lado como vizinhos, freqüentemente pertencendo à mesma
família. Em muitas famílias, o pai cumpria os preceitos religiosos e seguia
todas as regras tradicionais de vestuário. A mãe usava peruca e fastidiosamente
mantinha sua cozinha pura de acordo com a dietética judaica. Alguns
adolescentes seguiam os passos dos seus pais, mas outros, que tinham
"errado o caminho", tornavam-se sionistas, socialistas e até
comunistas. Jovens devoravam avidamente ficção, livros teóricos, periódicos e
jornais proibidos, fumavam no shabat e enchiam seus lares com intermináveis e
ruidosas discussões políticas.
A vida religiosa dos
judeus de Varsóvia expressava-se no seu estilo de vida no lar, no cumprimento
dos mandamentos, nas muitas instituições e serviços, tais como banhos rituais,
os preceitos dietéticos judaicos, a rede de rabinos e dayans (juízes) e as
muitas casas de orações. Nas sinagogas e shtiebels, os judeus religiosos e
tradicionais se reuniam para rezar nos feriados religiosos, no shabat e dias
úteis, e para intermináveis horas de estudo e discussão com amigos. Nos anos
30, havia trezentas dessas casas de oração, e quase todos que lá iam tinham um
lugar cativo. Nos feriados, especialmente Rosh
Hashaná e Yom Kipur, o estilo do
culto era considerado muito importante e cantores com voz proeminente eram
muito solicitados. A grande sinagoga da rua Tlomacka, que na realidade evoluía
para tornar-se um dos mais esclarecidos locais de culto, atraía devotos tendentes
à assimilação. Introduziram-se certas reformas, tais como proferir sermões em
polonês, quando isso foi permitido pelo governo.
As classes instruídas
e os assimilacionistas estavam convictos de que, para terem qualquer
influência, teriam de introduzir mudanças no sistema educacional, no traje e no
estilo de vida, mas deveriam a todo custo abster-se de interferir no rigoroso
ritual religioso. Assim, não estavam dispostos a instituir um judaísmo
"reformista" ou "conservador", e a vida religiosa permaneceu
ortodoxa. Mesmo nas sinagogas mais esclarecidas não foram introduzidos órgãos
nos serviços religiosos, já que isso era considerado não-tradicional. Por outro
lado, porém, serviços que incluíam um coro masculino foram considerados
inteira-mente aceitáveis, e um componente importante do serviço era obviamente
a música litúrgica vocal do cantor de sinagoga. Na grande sinagoga, oficiavam
freqüentemente cantores bem conhecidos, como Gershon Sirota, que morreu no
gueto de Varsóvia, e Moshe Kossovicki.
Os shtiebels
hassídicos, além de serem casas de oração e estudo, eram também usados como
alojamentos para os seguidores do rabino hassídico. As rezas no shtiebel eram altamente emocionais. Lá era
palco de deliberações sobre literatura hassídica, homilias proferidas em
dias (Shavuot), e espontâneas cantorias
e danças. Dentre as seitas hassídicas de Varsóvia, o grupo mais poderoso era o
dos hassidim de Ger. A sede rabínica ficava na cidadezinha de Ger, não longe de
Varsóvia. O local inteiro vivia sob o patrocínio da corte do rabino, e acorriam
ao lugar milhares dos seus seguidores, especialmente em dias festivos e
feriados. O Admor(2) de Ger, Rabi Abraham Mordecai Alter, afirmava que, a fim de combater a
secularização e erosão da integridade religiosa dos judeus, era necessário
mover-se em novas direções. A fundação do Agudath Israel e o papel dominante exercido pelo Admor e seus seguidores
marcaram realmente a adoção de métodos até então desconhecidos por um campo
religioso ortodoxo. Entre os rabinos hassídicos sediados em Varsóvia figurava
Klonimus-Kalmish Schapira de Piaseczno, que deixou uma coleção dos seus sermões
dos dias de gueto, publicada sob o título Fogo
Sagrado.
Transcrição: Daniel Moratori - avidanofront.blogspot.com
Fonte: GUTMAN, Israel - Resistência. Ed. Imago, 1995, pg 37-47
(1) YIVO — em idiche, Yídisher Visenshoftlihher Institui (Instituto
para Pesquisa Judaica), fundado oit Vilna, em 1925, para o estudo científico da
vida judaica e com especial ênfase nos judeus cai: Europa Oriental e seus
descendentes falantes de idiche em todo o mundo. Ao irromper a Segunda Guerra
Mundial, sua sede foi transferida para Nova Iorque (N. do T.).
(2) Admor (iniciais das palavras hebraicas Adonenu Morenu ve-Rabbenu, ou seja [não literalmente] “Nosso Mestre e Senhor") — titulo em geral dado, especialmente em contextos hebraicos, a rabinos hassídicos (N. do T).
Ver também: