Dois meninos orfãos puxam e empurram uma carroça no gueto de Kovno. Seus pais foram assassinados no início da guerra. Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa11965
Dois guetos com cancelas e arame farpado tinham sido implantados, em julho de 1941, no arruinado distrito de Slobodka, de Kaunas, para os judeus dessa cidade da Lituânia central, um Gueto Grande, que abrigou aproximadamente 27.500 pessoas, e um Gueto Pequeno, ligado por uma ponte de madeira através de uma rua intermediaria, que confinava outras 2.500. Um hospital havia sido montado em diversos edifícios do Gueto Pequeno, com maternidade, alas médicas e cirúrgicas; pacientes com doenças contagiosas foram alojados num edifício separado, de dois andares. Um orfanato também foi instalado no Gueto Pequeno para as várias centenas de crianças judias cujos pais já haviam sido assassinados pelos alemães ou em pogroms.
Em
4 de outubro de 1941, o sabá depois do Yom Kippur, um destacamento do
Einsatzkommando 3, de Jäger, tendo à frente o Obersturmführer Joachim Hamann,
começou a destruir o Gueto Pequeno. Um rabino, Ephraim Oshry, foi testemunha
ocular:
De manhã cedo, uns 50 soldados alemães,
juntamente com uns 100 colaboradores lituanos muito mais do que víamos
habitualmente, o que achamos aterrorizante se amontoaram no Gueto Pequeno e
expulsaram as pessoas, sem exceção, de suas casas. Escorraçaram as pessoas da
cama, sem mesmo lhes dar a oportunidade de se vestirem. Nas ruas, empurravam os
velhos e fracos, as crianças, as mulheres e homens. Usando as coronhas dos
fuzis como porretes, espetavam as pessoas a torto e a direito. O sangue jorrava
como água. Os judeus foram perseguidos até a praça Sajungos, outrora o mercado
de cavalos de Sobodja. Ali, os alemães começaram a dividir os judeus da maneira
como sorteiam carneiros para o abate: “Direita! Esquerda!” Morte! Vida!
A
seleção durou várias horas. Pessoas que apresentavam salvo-condutos de trabalho
- apenas cinco mil tinham sido emitidos nos dois guetos inteiros - eram
separadas das que não os possuíam. Pacientes foram evacuados das alas médica e
cirúrgica. Na ala da maternidade, o jovem a advogado de Kaunas Avraham Tory
registrou em seu diário da época: "Os alemães queriam ver os bebês que
tinham acabado de nascer. Alcançaram a sacada da janela em que os bebês estavam
deitados e ficaram ali, por algum tempo, observando os bebês. Os olhos de um
dos alemães se enevoaram. "Nós os deixaremos ficar?” perguntou ao amigo.
Os dois saíram do cômodo, deixando as mães e os bebês. Dessa vez eles
sobreviveram".
Os
órfãos não tiveram tanta sorte, continua Tory:
Os alemães, então, passaram a
apanhar as crianças do abrigo feito para elas. Das 153 existentes, apenas 12
foram deixadas na casa. Foram somente esquecidas. As enfermeiras também foram
tiradas. As crianças que estavam só com roupa de envolver foram levadas para
fora e colocadas no chão do pátio de pedra do hospital com os pequeninos rostos
voltados para o céu. Soldados do terceiro pelotão da polícia alemã passaram
entre elas. Pararam por um momento. Alguns chutaram os bebés com as botas. Os
bebês rolaram um pouco para o lado, mas logo em seguida recuperaram a posição
de barriga para cima, os rostos voltados para o céu. Foi um raro espetáculo de
crueldade e indiferença. Um caminhão pesado se aproximou. Primeiro as crianças
e depois as enfermeiras foram lançadas dentro dele. O caminhão foi coberto com
uma lona e partiu em direção do Forte IX.
Os
judeus do Gueto Pequeno que tinham sido selecionados foram formados em coluna
de cem e saíram. As pessoas com salvo-condutos de trabalho que haviam sido
poupadas foram mandadas pela ponte para o Gueto Grande. William Mishell
observou a seleção do Gueto Grande. "Um terrível drama humano estava se
desenrolando diante dos olhos dos judeus de ambos os lados da cerca”, recorda.
"Era claro: as pessoas do lado ruim estavam sendo levadas para o Forte IX,
para uma execução em massa. Todos os de ambos os lados da rua começaram a gritar
e os do lado do Gueto Grande procuravam desesperadamente ver de relance os
entes queridos que estavam sendo levados embora.” Em seu resumido relatório de
1 de dezembro de 1941, Jäger relacionaria “315 homens judeus, 1.107 mulheres
judias, 496 crianças judias” executados em 4 de outubro de 1941 no Forte IX,
sustentando absurdamente que a seleção foi uma “ação punitiva pelo fato de um policial
alemão ter sido morto a tiros no gueto”.
Mas
nesse dia foram mortos mais do que os que marcharam ou foram de caminhão para o
Forte IX. Tinha havido sessenta e sete pacientes, médicos e enfermeiras no edifício
do hospital de doenças contagiosas, naquela manhã. Um número desconhecido de
residentes sãos do Gueto Pequeno havia-se juntado a eles ali, pensando que
podia encontrar toda proteção. No começo da Aktion, os alemães tinham trancado
os portões do hospital a pacientes e fugitivos da mesma forma. Transferiram
para o hospital os pacientes cirúrgicos que tinham estado bastante doentes para
comparecer à seleção e depois, pregaram as portas e janelas com tábuas. Puseram
dez judeus cavar uma cova no pátio do hospital. Tory descreve o que se seguiu:
Defronte ao prédio do hospital, no
outro lado da cerca, se situava uma fábrica de casaco de peles chamada Lape.
Podia-se ver claramente, desse lugar, o pátio do hospital. Os trabalhadores da
fábrica, nesse dia, viram dali os dez judeus cavando a cova; viram como os
residentes da casa dos idosos foram descidos para ela, como pacientes foram
jogados dentro dela e depois fuzilados em seu interior; viram como criancinhas
também foram jogadas ali, assim como pacientes que mal se aguentavam em pé... À
uma da tarde, podia-se ver fumaça subindo do edifício do hospital. Mais tarde,
as chamas cresceram, saindo dele: o hospital ardeu. O fogo queimou por todo o
dia e à noite. Pacientes, equipe e fugitivos, assim, foram queimados vivos.
Se
não tivessem compreendido antes, as pessoas do gueto de Kaunas sabiam agora que
nada as protegia da morte e que outras Aktionen se seguiriam. Começaram a se
afastar umas das outras com um gracejo em iídiche, que o rabino Oshry relembra:
"Auf Wiedersehn in yenner velt" - "Vejo você no próximo
mundo". Mais tarde, em outubro de 1941, começaram a correr de novo, no
gueto, rumores de grandes fossos sendo cavados no Forte IX por prisioneiros de
guerra russos. Os otimistas especularam que eram armadilhas para tanque que
antecipavam um contra-ataque do Exército Vermelho; os realistas sabiam que se
destinavam a sepulturas em massa.
O
Dia Negro, como os sobreviventes o chamariam, veio mais para o fim do mês, com
uma ordem para todo o mundo no gueto comparecer á praça da Democracia, às seis
da manhã de 28 de outubro de 1941, ou ser fuzilado. As pessoas tinham de se
apresentar com suas famílias conforme suas atribuições profissionais: o
conselho do gueto com um emblema; os trabalhadores que construíam uma base
aérea para a Luftwaffe fora de Kaunas com outro; curtidores de couro,
construtores de estrada, peleteiros, bombeiros, funileiros, cada um tinha de
ser identificado como tal. Mishell trabalhava para conselho judeu e seu cunhado
trabalhava na guarnição da base aérea, e tão crucial a família julgou a decisão
sobre o emblema a ser ostentado que ficaram em claro a noite inteira
debatendo-a, com a conclusão final de as pessoas que trabalhavam para os
militares alemães seriam consideradas mais valiosas, recaindo pois a escolha na
posição da base aérea. “Ninguém do gueto pregou um olho na noite de 27 de
outubro, registra Tory. "Muitos choraram amargamente, muitos outros
recitaram salmos. Houve também pessoas que fizeram o oposto: resolveram ter um
bom momento, festejar e se fartar de comida, torrar toda a sua provisão.
Moradores cujos apartamentos estavam abastecidos de vinhos e bebida beberam
tudo o que puderam e até convidaram os vizinhos e amigos para essa macabra
festa, “a fim de não deixar nada para os alemães”.
Como foi ordenado, vinte e oito mil pessoas deixaram suas portas destrancadas,fixaram avisos na porta se estivesse dentro alguém doente demais para se deslocar e caminharam pelas ruas do gueto nessa manhã, “muito fria”, lembra Mishell, “um típico dia de outono, com fina camada de neve cobrindo o terreno. Estava ainda escuro e o ar se mostrava extremamente úmido. As últimas estrelas visíveis desapareceram gradualmente, enquanto a multidão começava a crescer. Podiam-se ver mães com os filhos nos braços, pessoas idosas que mal conseguiam andar, crianças pequenas segurando a mão das mães, adultos dando apoio aos pais mais velhos ou aos avós, e até inválidos apoiados em bengalas. Algumas pessoas incapazes de caminhar eram transportadas em macas”. Tory descreve isso gravemente, como "uma procissão de gente enlutada, sofrendo consigo mesma”.
Um grupo de meninos segurando uma criança pequena no gueto de Kovno. Fonte:https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa11952 |
Todo o mundo ficou esperando por três horas, enquanto a aurora finalmente irrompia. Tory viu, então, que “a cerca do gueto foi rodeada de metralhadoras e por um pesado destacamento de policiais alemães armados, comandados pelo capitão [Alfred] Tornbaum. Eles tinham também, à disposição, batalhões de guerrilheiros lituanos armados. Uma multidão de espectadores lituanos curiosos havia-se reunido nas colinas que dominavam o gueto. Acompanharam os acontecimentos, participando na praça com um grande interesse não isento de prazer, e não saíram dali por muitas horas”. O robusto e brutal SS-Hauptscharführer Helmut Rauca chegou às nove horas com o representante chefe da Gestapo, capitão Heinrich Schmitz, Tornbaum e o capitão SA Fritz Jordan.
Kauca,
com sua farda verde-acinzentada, carregando um bastão, se colocou numa elevação
num extremo da praça e a seleção começou. De luvas pretas, apontava com um dedo
a esquerda e a direita, dirigindo grupos e famílias. Por algum tempo, não ficou
claro que lado significava a vida e que lado a morte, e as pessoas às vezes
pediam para mudar. Se a mudança era para a direita, diz Tory, “rindo sarcasticamente,
Rauca a consentia”. Logo em seguida, como os doentes e idosos se acumularam no
lado direito, o lado que significava a morte se tornou claro. “De quando em
quando, Rauca se regalava com um sanduíche... ou apreciava um cigarro,
realizando todo tempo seu trabalho perverso sem interrupção”. Às vezes, um
auxiliar trazia um pedaço de papel que mostrava uma contagem dos mandados para
a direita - eles eram rapidamente deslocados para o vazio Gueto Pequeno - o que
indicava que Rauca tinha uma cota a preencher. Pessoas morriam à espera dessa
escolha na praça. Como o dia passava e as contagens lhe mostrava pouco de sua
cota, Rauca escolhia tanto pela aparência como pelo salvo-conduto de trabalho
ou especialidade. Todos os quinhentos trabalhadores do turno da noite da base
aérea que, atordoados e exaustos, tinham vindo diretamente do trabalho para a
praça da Democracia ele mandava para a direita, mas os bem-dispostos
trabalhadores do expediente diurno ele mandava para a esquerda.
Soldados alemães se preparam para um ataque no gueto de Kovno, enquanto alguns moradores judeus observam.
Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1047792
A
seleção se prolongou pelo dia todo. “Estava começando a escurecer”, escreve
Tory, “e ainda milhares de pessoas permaneciam de pé na praça. O capitão Jordan
então abriu outro local de seleção. Foi auxiliado pelo capitão Tornbaum”. A
polícia do gueto judeu tentou deixar passar pessoas de um lado para o outro e,
às vezes, conseguiu. Um deles salvou desse modo o cunhado de Michel, sua mulher
e filho.
Estava
escuro quando os alemães concluíram a seleção. Cerca de dez mil pessoas tinham
sido transferidas para o Gueto Pequeno, onde se instalaram nos frios edifícios
para passar a noite. As outras voltaram para a casa, diz Tory, “famintas,
sedentas, oprimidas e desalentadas... a maioria enviuvada ou órfã, separada de
um pai, de uma mãe, de filhos, irmão ou irmã, avô ou avó, tio ou tia. Um
profundo pesar desabou sobre o gueto. Em cada casa, passara a haver cômodos
vazios, camas desocupadas e os pertences dos que não haviam voltados das
seleções. Um terço da população do gueto fora abatida. Todas as pessoas doentes
que haviam permanecido em suas casas de manhã haviam desaparecido. Haviam sido
transferidas para o Forte IX durante o dia”.
Na
manhã seguinte, foi a vez dos dez mil. Um adolescente fugiu da carnificina
resultante e voltou para Kaunas a fim de informar o conselho judaico. O resumo
de Tory reflete o relato de testemunha ocular do rapaz:
A procissão, que somava umas 10.000
pessoas, e proveniente do Gueto Pequeno para o Forte IX, durou do amanhecer ao
meio-dia. As pessoas idosas, e as que estavam doentes, sucumbiram na beira da
estrada e morreram. Tiros de advertência eram dados incessantemente ao longo de
todo o caminho e em torno do Gueto Grande. Milhares de curiosos lituanos se
juntaram nos dois lados da estrada para assistir ao espetáculo, até a última
das vítimas ser engolidas pelo Forte IX.
No forte, as desventuradas pessoas
foram imediatamente atacadas pelos matadores lituanos, que as despojaram de
todos os objetos de valor - brincos, braceletes de ouro. Obrigaram-nas a se
despir, empurraram-nas para os fossos que tinham sido antecipadamente
preparados e fizeram o fogo, para dentro do fosso, com metralhadoras ali
previamente colocadas. Os assassinos não tinham tempo de atirar em todo o mundo
de cada lote antes de o próximo chegar.
Era-lhes concedido o mesmo
tratamento dos que os tivessem precedido. Eram empurrados para dentro do fosso,
sobre o topo dos mortos, dos agonizantes e dos ainda vivos do grupo anterior.
Assim continuou, lote após lote, até os 10.000 homens, mulheres e crianças
terem sido chacinados.
Jader
listou o massacre de 29 de outubro de 1941, no Forte IX, como de 2.007 homens
judeus, 2.920 mulheres judias, 4.273 crianças judias, justificando-o como “remoção
do gueto de judeus excedentes”.
Enquanto
os judeus de Kaunas estavam sendo submetidos à seleção e assassinados aos lotes
no Forte IX, Himmler estava pretendendo desfrutar de uma semana em Schönhof, a
residência de caça do ministro alemão das Relações Exteriores, Joachim von
Ribenntrop. O ministro das Relações Exteriores italiano, conde Galeazzo Ciano,
era o hóspede de honra, e o massagista de Himmler, Felix Kersten, também era
hóspede. Em 26 de outubro de 1941, o grupo abateu 2.400 faisões, 260 lebres, 20
gralhas e um corço. "O conde Ciano, sozinho, derrubou 620 faisões",
escreve Kersten: “foi o campeão. Ribbentrop, 410 faisões, Himmler, somente 95.
Himmler disse a Kersten que só se havia juntado à caçada porque “o Führer
desejara expressamente que ele o fizesse”. Murmurou, sobre o sucesso de Ciano: “Quisera
que os italianos na África fossem tão bons atiradores.. Onde não há perigo, os
italianos são heróis”. Depois do jantar dessa noite, Ciano disse a Kersten em
particular: “A guerra durará muito tempo”. Kersten acrescentou: “e Ciano observou
que nós éramos os únicos a partilhar essa opinião. Aqui em Schönhof, todo o mundo
está dizendo que a guerra acabará logo”.
No
fim da caçada de Schönhof, na noite de 28-29 de outubro de 1941, enquanto os
dez mil de Kaunas estavam fazendo suas camas nos frios edifícios do Gueto
Pequeno, sabendo o que a manhã lhes traria, Kersten falou com Himmler sobrea
caça enquanto lhe fazia uma massagem:
Eu disse que a adorava e que nunca me sentia tão bem como na caça de tocaia. Tornava-me uma pessoa totalmente diferente, quando estava ao ar livre, espreitando o cervo horas a fio, e continuava a colher o benefício desses dias de caça por um considerável tempo depois.
Himmler respondeu que era certamente a melhor parte da caça, mas o objetivo real da caça de tocaia, dar um tiro num desventurado cervo, contrariava a sua natureza. “Como você pode encontrar qualquer prazer, sr. Kersten, atirando por trás de um esconderijo em pobres criaturas que pastam à beira de um bosque, inocentes, indefesas e confiantes? Pensando bem, é puro assassinato”.