Desde que retornei de Auschwitz, em maio de 1945, senti que tinha que escrever o que aconteceu com minha família e comigo – todas as minhas experiências. Só a lembrança daquilo traz-me dores e lágrimas. Tentando permanecer sã, fui adiando isto. Hoje, se passaram mais de 50 anos desde o genocídio planejado por Hitler contra nosso povo. Sinto-me forçada a registrar da forma que me lembro. O tempo está acabando. Tenho 67 anos. Meus filhos, a quem tentei educar da forma mais normal possível, e com quem tentei não falar sobre o passado, hoje são homens crescidos. E têm o direito de conhecer a história de sua família. Portanto, dedico minhas memórias a meus maravilhosos filhos e netos.
Veronika Schwartz, Montreal, 1994.
Nasci em seis de junho de 1927, na Hungria, em uma pequena cidade chamada Kisvárda, no condado de Szabolcs. A população total em 1941 era por volta de 15.000. A população judia era de cerca de 4.000. Naqueles tempos, os bebes nasciam em casa, com o auxílio de uma parteira e, provavelmente, de alguns membros da família. O meu tio Mikós Ösztreicher me disse que minha mãe tinha ficado grávida sete vezes; quatro permaneciam vivos.
O nome de meu pai era Schwartz Mór. O nome de minha mãe era Ösztreicher Irén. Meu irmão, Zoltán, era o mais velho, nascido em 19 de novembro de 1923. Minha irmã, Klára, era dois anos mais velha do que eu. Minha irmã, Éva, era dois anos mais jovem que eu.
Meus pais tinham um armazém em Fö utza, que significa a rua principal. Vendiam móveis, material de jardinagem, sapatos e roupas prontas. Trabalhavam muito duro. A vida não era fácil. Tanto quanto posso me lembrar, senti pena de minha mãe. Ambos os seus joelhos eram machucados, mas nunca desejou falar sobre uma operação, temendo que não fosse bem sucedida e que pudesse terminar pior do que antes. Só continuava a colocar bandagens nos pés o dia todo, tentando fazer o melhor para atender os fregueses e, naturalmente, sua família. Ela cozinhava antes de ir para a loja. (...)
Não me lembro de ter tido brinquedos, como uma bicicleta ou bonecas, mas não me lembro de ter sentido falta deles também. Éramos uma família. A alegria era ver minha mãe segurando as mãos de meu pai, sorrindo. Nunca estávamos entediados. Sempre havia coisas a fazer: regar flores, limpar o jardim, jogar bola ou a escola (eu era a “professora” e reunia as crianças mais jovens e brincava de escola com elas), trazer lenha para a casa, alimentar o cão, conversar com meus amigos na rua ou com nossos inquilinos ou vizinhos. Gostavam muito de nós. Estávamos em casa. Apesar de modesta, era nosso castelo. Como jovens crianças, tudo que precisávamos era de um monte de areia para ficarmos ocupados e felizes. Amávamos também nosso país. Lembro-me que quando soldados Húngaros a cavalo passavam pela rua próxima, corria para juntar um buquê de flores de nosso quintal e corria toda distância para dar-lhes flores. (...)
Tudo mudou no ginásio. Senti o anti-semitismo. Não me lembro do nome de minha professora, mas chamava as garotas gentias pelos seus nomes e as garotas judias pelo nome de suas famílias. Não podia me concentrar, isso me preocupava muito. Comecei a sentir o ódio. Isto foi em 1939 e tinha somente doze anos. Minha avó costumava dizer como era horrível para o povo judeu. Como, durante uma rebelião ou revolução, sempre colocavam a culpa nos judeus. Eu só sentia pena por terem sofrido tanto.
O ódio somente aumentava, as coisas não melhoravam. Um dia, minha avó veio a nossa casa gritando que um dos seus vizinhos tinha ameaçado matar meu tio Miklós. Eu sabia onde meu tio estava, corri todo o caminho, cinco ou seis quilômetros, para achá-lo em uma vila próxima, chamada Ajak. Ele se escondeu, mas para o Grande Feriado foi à sinagoga. Os gendarmes (a polícia de elite) estavam procurando por ele e entraram na sinagoga. Meu tio escapou por uma janela, e a Sra. Rooz, que era uma parente distante, escondeu-o em sua casa. Quando as coisas acalmaram, conseguiu embarcar em um navio e escondeu-se no carvão. Chegou ao Canada em 1939 como um clandestino, quase morto. Nunca soube porque os gendarmes queriam prendê-lo ou porque o homem (seu nome era Orgován), que supostamente era seu amigo, queria matá-lo. Tudo que sabia era que meu tio vendia terras naquele tempo. Talvez algum negócio de terras não o tenha agradado. Toda nossa família ficou contente quando recebemos uma carta do Canadá de nosso tio.
Parecia que, para a população judia, a vida estava ficando bem apavorante. Meu pai tinha que fazer trabalhos forçados. Por sorte, foi desqualificado devido a uma hérnia. Meus pais decidiram que deveríamos aprender uma profissão ao invés de continuarmos nossa educação. Pagaram a um relojoeiro bem conhecido para ensinar meu irmão a consertar relógios. Minha irmã mais velha estudou para ser cabeleireira, também de forma privada, o que era bem caro. Meu irmão e irmã terminaram seus estudos. Meus pais compraram uma bicicleta para minha irmã. Tinha fregueses particulares e pedalava para suas casas. Era muito popular, algumas pessoas gostavam muito dela. Encontraram uma costureira para me ensinar a costurar. Tentei, mas além de aprender uns poucos pontos diferentes, nunca consegui terminar um vestido.
Enquanto isso, meus pais sabiam que a vida para nós estava piorando. O anti-semitismo era muito pavoroso. Sabendo que, acontecesse o que acontecesse, precisaríamos de comida, compraram várias vacas, um cavalo, cabras, gansos, patos e galinhas. Neste ponto não fazia muitas costuras, ajudava muito com os animais. Adorava andar a cavalo. Ordenhava as vacas e alimentava o resto dos animais. Meu avô, Lajos, vinha todos os dias para ajudar e tínhamos alguns empregados.
A situação política estava piorando, especialmente para nós, o povo judeu. Minha mãe fazia visitas mais freqüentes ao Rabino, para rezar por nossa segurança e bem-estar e para termos paz. O Rabino nos abençoava, dizia-nos para rezar, e para ter fé em D-us [nota: judeus ortodoxos não escrevem o nome do Senhor de forma alguma, usando este tipo de recurso]. Sempre a acompanhava nessas visitas.
Manter o negócio aberto não era uma tarefa fácil. Mas era difícil conseguir mercadorias têxteis como seda, linho, algodão e flanela. Minha mãe nunca desistiu. Viajava para Budapeste para encontrar seus fornecedores e tinha confiança que não voltaria de mãos abanando. O nome da firma de negócios ao atacado era Mandel Gustav e Sandor. Ela não podia deixar de falar dessas pessoas, como tinham sido boas com ela. Por ter os joelhos doentes, desejavam ajudá-la de forma especial. Vendiam-lhe mercadorias têxteis. Foi convidada para a casa deles. Um dia nos disse, “vi um belo banheiro de azulejos, isto é o que teremos um dia. Vamos instalar encanamento em nossa casa”. Nunca abandonamos a esperança. De fato, tínhamos eletricidade instalada e um novo piso de cerâmica na cozinha.
A despeito de nossas esperanças e preces, o ódio parecia piorar. Acender velas nas noites de sexta-feira era arriscado. Nossas janelas foram quebradas. Pedras foram atiradas na casa de nossos avôs. Meu pai entaipou algumas de suas janelas. Os bandidos das cruzes flechadas ficavam nos insultando. Um homem jovem veio a nossa loja como um animal selvagem, xingando, pegando caixas de sapatos e jogando-as na rua. Minha mãe implorou-lhe para que levasse o que queria, mas o ódio era muito profundo. Tremíamos de medo.
Meu irmão foi convocado para o Exército. Meus pais não puderam vê-lo ir. Minha mãe fez uma jarra de café muito forte e ele bebeu tudo, então chamaram o doutor da família e disseram que ele não estava bem. O doutor ouviu o seu coração e escreveu uma carta dizendo que era incapaz de ir para o serviço, devido a uma doença cardíaca. (...)
Cerca eletrificada em Auschwitz
Leis e regras cruéis foram-nos impostas dia após dia. Era muito doloroso perceber que tínhamos sido extremamente otimistas por muito tempo. Era chocante quando visitava um dos nossos inquilinos, a família Posner, de origem russa. Tinham uma empregada, uma jovem cigana. Gostava de falar com ela, era sempre alegre e feliz. Perguntei, “Onde está ela?”. Disseram-me que tinha sido levada embora a força e afogada com muitos outros. “Como é possível matar pessoas inocentes. Devem ter sido enviados para trabalhar em outro local”, disse à Sra. Posner. Ela me disse suavemente, “queria que você estivesse certa”.
Não havia mais razão para ser otimista. Éramos proibidos de ouvir o rádio. Quando caminhava pela rua e tentava ouvir as notícias, fui apedrejada. Minha mãe adorava ir ao banho ritual (mikvah). Era um dos prazeres da vida dela, mas foi proibido.
Ouvia um monte de sussurros. Ouvi que falavam de uma rota de fuga, mas que não seríamos capazes de usá-la. Era muito tarde. Os judeus não podiam viajar. Minha mãe nunca concordaria com uma rota de fuga, a menos que toda a família pudesse escapar junta. Isto era impossível. Levamos para casa um monte de mercadorias (móveis, tecidos) de nossa loja. Cavamos buracos nos telheiros e enterramos os tecidos e roupas em caixas de madeira.
Sempre que meu pai ia a sinagoga, voltava para casa com péssimas notícias. Ouviu que um eminente doutor e toda a sua família tinham cometido suicídio. Em 19 de março de 1944, passou a ser compulsório usar uma estrela de David amarela. No mesmo dia, o exército alemão invadiu a Hungria. Além das expectativas dos alemães, os húngaros cooperaram integralmente e os receberam de braços abertos. Sentíamo-nos em uma armadilha.
Lembro-me do Sr. Fekete, que vinha a nossa casa ler o medidor de eletricidade. Quando entrou, olhou para todos nós. Começou a caminhar em direção de meus pais. Ele gostaria de falar-lhes, mas foi sobrepujado pelas emoções e começou a chorar. Só ficou chorando e saiu. Sabia que algo terrível iria acontecer. Certo como um relógio, poucos dias depois, um jovem veio a nossa casa e a casa de meus avós. Este jovem vivia em nossa rua. Minha avó e a avó dele eram amigas uma da outra. Seu nome era Bajor e tinha sido autorizado a inventariar nossos pertences. Não levou muito tempo para descobrir que teríamos que deixar nossas casas e ir viver juntos em um gueto, em Kisvárda. Todos tentamos nos consolar o melhor possível. Meus pais acharam que meu irmão deveria se alistar em um campo de trabalho. Talvez tivesse uma chance maior de ficar vivo. Aceitou a sugestão e partiu para se alistar. Foi de quebrar o coração vê-lo partir.
Meus pais deram nosso gado em confiança para as pessoas que usavam nossa propriedade como caminho para chegar à cidade. Mesmo que tivessem prometido tomar cuidado de todos os animais, era duro deixá-los para trás – os filhotes de cabrito que amava; o belo cavalo que adorava cavalgar; as vacas, gansos, patos e galinhas. Minha mãe trabalhou freneticamente preparando uma base de sopa, uma mistura de farinha e óleo ou gordura de galinha. Disse que enquanto pudéssemos conseguir um pouco de água, pelo menos poderíamos fazer uma sopa. Vi quando ela quebrou e começou a chorar. Implorei para que não chorasse. Ela disse: “não choro por mim, choro por todos vocês. Eu os amo muito”. Tentei dizer a que a nossa partida era só temporária. Era ingênua. Sabiam quão irracionais as pessoas ficavam com o ódio, inveja, vingança e poder, e ficaram com muito medo.
Meus pais trabalharam muito duro. Nunca fumaram ou beberam e economizavam cada centavo. O costume era dar a uma filha um dote quando se casava. Eles compravam pedras preciosas, diamantes e outro para nós três, para que quando nos cassássemos tivéssemos condições de começar uma vida nova sozinhas. Meu pai chamou-nos e todos descemos ao porão. Ali removeu alguns tijolos da parede, escondeu as jóias em uma garrafa e consertou a parede. Assim todos sabíamos onde estavam. Escondeu algumas jóias no sótão. Mesmo nossos vizinhos, os Fishers, do outro lado da rua, esconderam algumas jóias em nosso sótão.
Em meados de abril de 1944, fomos levados e aprisionados no gueto em Kisvárda. Fomos levados sob as condições mais cruéis pela gendarmerie Húngara. Todos estávamos apertados em um só quarto – minha avó, meus pais, minha tia Margit, tio Ernö e minhas duas irmãs, Klára e Éva. Abaixo de nosso quarto ficava um porão. Levavam para lá as pessoas para serem interrogadas, para descobrir onde tinham escondido o seu dinheiro e posses. Era sempre o chefe da família. Inicialmente torturaram os muito ricos e, mais tarde, a classe média. Era horrível ouvir os gritos.
Também nos preocupávamos com nosso pai. A comida era muito pouca e meu pai costumava sair escondido às 5 da manhã, antes do nascer do sol. Eu não sabia, mas uma família gentílica dava-lhe ovos, leite e pão. Ele corria um imenso risco para melhorar a qualidade de vida para sua família. As pessoas que lhe davam comida também eram muito especiais, desprendidas, gentis e desejosas de ajudar os necessitados. Era um ato corajoso, podiam entrar em grandes problemas ao ajudar judeus. Boas pessoas como elas nos davam incentivos para continuar tentando o máximo e prosseguir com nossas vidas. Era um esforço conjunto fazer o melhor que podíamos. Ajudávamos uns aos outros, compartilhando as tarefas domésticas. Éramos livres para ir para qualquer lugar dentro do gueto. Andava muito com minhas irmãs e todo mundo na família, conversando com nossos amigos e vizinhos, tentando descobrir novidades políticas. (...)
Mais uma vez, as novas eram pavorosas. Mais uma vez estraçalharam nossas esperanças que a guerra logo terminaria e que voltaríamos para nossos lares e negócios, recomeçando nossas vidas. As pessoas estavam dizendo que os alemães levariam todos para campos de trabalho. O gueto ficou como uma capela funerária. As pessoas choravam abertamente. Todos estavam apavorados. Não fazia sentido que a Alemanha quisesse avós, grávidas, bebês, pessoas doentes e crianças para trabalhar para eles. Na mente de todos havia a pergunta: “o que acontecerá a nós?” Da minha parte, fui educada no respeito a todos, seja qual for a sua religião. Assim era difícil entender a complexidade do ódio humano. Não acreditava que nos levariam para trabalhar. Minha avó, preocupada, perguntou-me: “que tipo de trabalho posso fazer para eles? Sou velha demais para trabalhar”. “Bem”, eu disse, “você pode ajudar na cozinha, descascando batatas, por exemplo ou no hospital, preparando ataduras. Todos podemos trabalhar”. (...)
Minha família e eu fomos levados em 31 de maio de 1944. Oitenta pessoas foram arrebanhadas em cada vagão. Não nos permitiram levar nada, somente as roupas que vestíamos. Havia um balde d’água, as portas fechadas e a jornada em direção a um destino desconhecido começou. Meu pai, minha mãe, minha avó, minhas irmãs, Klára e Éva, a tia Margit, tio Ernö – todos estavam muito quietos, tristes e sem palavras. Tentei muito alegrá-los. Encontrei um pequeno local de onde era possível olhar para fora e ver a paisagem. Pedi a todos para vir e ver. Não importa o quanto tentasse, ninguém se interessou. Minha avó ficava repetindo, “sou velha demais para trabalhar”. Se soubesse o que aconteceria com eles, eu teria passado cada minuto beijando e abraçando-os e fazendo o máximo para não ser separada deles.
Finalmente, o trem chegou em Birkenau, Polônia. As portas abriram. De alguma forma, fui empurrada para fora, de tal forma que me encontrei em pé sozinha e uma longa fila estava se formando atrás de mim. Olhei tudo em volta e podia ver que não havia ninguém de minha amada família. O medo e o pânico me atingiram. Chorei e me atirei ao chão, pensando que não levantaria, a menos que fosse colocada junto com minha família. Não me importava se me fuzilassem. Atrás de mim estavam as duas garotas Freed, de nossa rua, Vár utza. Estavam chorando, mas praticamente me levantaram e imploraram para que ficasse de pé ou seria fuzilada. Disseram que sua mãe estava grávida e não a podiam ver em lugar algum.
A longa fila foi formada e tivemos que começar a marchar. Era cerca de três quilômetros até Auschwitz. No caminho, vimos o arame farpado com a cerca de segurança de alta voltagem. Vimos um monte de pessoas dentro. Era um local medonho. Algumas pessoas caminhavam com longos paus e estavam batendo em outros. As roupas dessas pessoas eram trapos. Não podíamos imaginar o que este local poderia ser. Algumas pessoas diziam que deveria ser um asilo mental. Mas como podiam tratar doentes mentais de forma tão má?
Logo nossa marcha terminou e nos achamos no mesmo lugar – o Campo de concentração de Auschwitz. Este foi o pior dia de toda minha vida. A dor no coração de não saber o que aconteceria com minha família. Onde estavam? Sempre procurava com meus olhos tão longe quanto podia ver, em todas as direções, chegando a imaginar que podia ver meu pai.
As pessoas estavam exaustas mental e fisicamente. Começou a chover e estava frio. Durante todo o dia não recebemos comida, mas tínhamos que ficar na fila e esperar. Finalmente, um oficial SS veio e disse-nos que tentaria conseguir um pouco de chá. Isto não era um conforto para mim. Eu era uma alma perdida.
Mais tarde tivemos que ser desinfetados. Neste lugar, aparavam nossas cabeças. Tínhamos que nos despir. Faziam-nos passar por torturas humilhantes. Nossas roupas foram levadas e tínhamos que nos vestir de uma pilha de trapos. Enquanto andava por aquela área de desinfeção, como um milagre, observei minha prima em primeiro grau do lado paterno, Klein Magda. Ela reparou em mim ao mesmo tempo. Me disse que não tinha ninguém da sua família e que deveríamos tentar ficar juntas. Esperava que pudéssemos fazer isso.
Mais tarde fomos levadas para o C Lager (campo C). Permanecemos fora. Uma kapo (isto é, uma prisioneira feitora, designada para supervisionar um determinado grupo de trabalho de prisioneiras) veio falar conosco. Nos disse o seu nome, Toska. Acredito que fosse uma garota polonesa. Parecia ser muito honesta. Perguntou se tínhamos alguma pergunta. Muitas pessoas fizeram a mesma pergunta, “quando nos reuniremos com os membros de nossas famílias?” Com lágrimas nos olhos, apontou para o crematório. Passou um momento difícil ao falar. Depois de recuperar a compostura, continuou: “como vocês, fui trazida aqui com minha família, mas agora, estou sozinha”. Nos alertou para ficarmos alertas; não seria fácil ficar vivas. Depois disso, fomos arrebanhadas para dentro do barracão. Ali estava outra Kapo; seu nome era Éva. Era malvada. Uma garota judia bem apessoada, se comportava de forma desavergonhada, usando um pau para controlar as pessoas.
Fomos espremidos em uma posição sentada muito apertada para a noite. Em minha miséria, decidi seguir o conselho do Rabino: ter esperança e rezar. A cada noite, recitava preces em hebreu. Sabia-as bem e incluía cada membro de minha família e, naturalmente, Aisnley [o namorado de Vera]. De alguma forma, meu passado religioso deu-me forças. Mas também tinha um sentimento de culpa, “por que eu? Por que estou viva e minha família não?”. Me atormentava.
Antes do alvorecer, fomos acordadas por um alto som de apito. Tínhamos que correr e nos alinhar para inspeção. Duas vezes por semana, tínhamos que marchar nuas para dentro de um barracão, em frente a médicos, Mengele e alguns outros, para a seleção. Se alguém fosse removido da fila, isto significava a morte. Assim, tentávamos parecer o melhor possível.
Recebíamos uma fatia de pão e cerca de uma colher de chá de marmelada na manhã. À tarde, fazíamos um turno para pegar uma panela de comida, que não tinha sabor, muito pouco. Não havia pratos nem talheres. Desta forma, fazíamos uma fila e uma depois da outra bebíamos do mesmo copo. Muitas pessoas, inclusive eu, estavam pegando a doença das gengivas [escorbuto]. À tarde, novamente, tínhamos que ficar em fila por duas horas para sermos contadas. Algumas vezes vi corpos queimados, como carvão, contra a cerca. Era uma visão horrível.
Uma manhã, depois da contagem, deitei no chão. Um soldado SS pisou no meu estômago. A sobrevivência por mais um dia era uma conquista.
Cerca de três ou quatro semanas mais tarde, numa manhã, estávamos entrando em uma fila para termos nossos números de identificação tatuados nos antebraços, quando minha prima Magda foi removida da fila. Mais uma vez me senti perdida. Queria muito ficar com ela, era muito boa comigo. Ajoelhei-me e fui até uma janela, passei por ela e achei Magda. Entrei na fila atrás dela. Não tínhamos idéia do que aconteceria conosco, mas estávamos juntas mais uma vez e isto significava muito para ambas. Havia dezesseis pessoas. Entramos em pequenos vagões puxados por um trator. Depois de viajar por cerca de três horas e meia, chegamos em uma fazenda.
Foi-nos dado abrigo em um telheiro. Dormíamos na palha no chão. Mais tarde, colocaram alguns catres para nós. Quando estava ficando escuro, a porta era fechada e ficávamos trancadas. As 6:00 da manhã as portas abriam de novo. Recebíamos alguma comida e eram levadas por um caminhão até os campos, para trabalhar. Tínhamos que colher trigo e aveia, arrumar em feixes, amarrá-los e colocá-los em pé, como se formando pirâmides. Tínhamos dois supervisores: um homem, que era gentil. Se alguém tivesse dificuldade em fazer o trabalho, tentava ajudar e nunca ficava zangado. A mulher não gostava de nenhum de nós. Ouvi-a dizer ao supervisor que éramos judeus e que não merecíamos nenhuma ajuda. Todos tentamos dar o máximo de nós, este local era definitivamente melhor que Auschwitz. Aos domingos, para o jantar, nos davam purê de batatas com uma fatia de presunto, em um prato normal. Isto significava muito para todos.
Um dia, o proprietário cavalgou até o lugar onde trabalhávamos. Me chamou e outra garota para falar com ele. Nos disse que ao invés de trabalhar nos campos, iríamos trabalhar na cozinha. A outra menina tinha só treze anos. Normalmente eu a via engraxando sapatos. Acabei ajudando às duas empregadas, descascando vegetais, frutas e assim por diante. Era melhor que trabalhar nos campos. Enchia minhas roupas com as cascas das maçãs que descascava. Algumas vezes conseguia esconder algumas cenouras ou pequenas maçãs; eram compartilhadas com todos.
Via a família indo para a igreja nas manhãs de domingo. Lembrava-me de como costumava ir para a sinagoga junto com meus pais, irmão, irmãs e outros membros de minha família. Não tinha inveja deles, mas me magoava muito. A injustiça era tão horrenda. Aqui estava eu, trabalhando como uma escrava. Por quê? Não tinha feito nada de errado. Tinham nascido na fé cristã. Por acaso, eu nascera na fé judaica. Tinham tudo que possuíam. Tudo tinha-nos sido confiscado. Tinham sua família viva. Não sei o que aconteceu com a minha. Como se podia permitir que todos esses crimes acontecessem no século XX, sem que nem uma só nação tentasse nos salvar? Onde estava Deus? Teria Ele dormido? Estava perdendo minha fé na humanidade. Questionava a existência de Deus. Afinal de tudo, tinha visto o crematório soltando fumaça o dia todo em Auschwitz. As crueldades sádicas que testemunhara davam-me razões para acreditar que havia muito poucas chances de que veria todos de minha família de novo.
Depois de trabalhar na cozinha por cerca de três meses, escutei as duas empregadas mostrando preocupação sobre o quão próximo os russos estavam e sobre o que aconteceria com eles. Para nós, isto significava uma esperança, de que nossa liberdade se aproximava. (...)
Os russos estavam se aproximando. Tínhamos visto explosões de artilharia bem próximas. Nossas vidas estavam sob risco elevado. Todos estavam com medo. Continuamos a trabalhar mais umas duas semanas, mas uma manhã, ao invés de sermos levados para o trabalho, fomos transportados de volta para Auschwitz. Era muito difícil ainda ter esperança. As pessoas em Auschwitz pareciam esqueletos e tinham inveja por termos passado tempo trabalhando em uma fazenda. Nos disseram que tinha irrompido uma epidemia de tifo. Alguns dos barracões tinham sido queimados até as fundações. As pessoas morriam como moscas. Não podia achar palavras para explicar a intensidade do crime. Por aquela época, parecia que éramos os remanescentes de uma raça. Ficava dizendo a mim mesma para não desistir – se alguém de minha família tivesse sobrevivido, poderiam precisar de mim. Este sentimento de responsabilidade para minha família e com nossa raça mantinha-me lutando para ficar viva.
A fome, sujeira e tortura continuavam. Uma manhã, para meu espanto, recebi um pequeno pacote. A Kapo que me deu, disse que tinha que levar de volta uma resposta. Eu o abri: havia um pouco de pão, um lápis e um bilhete. O conteúdo do bilhete era o seguinte: “nasci na Polônia. Não sou judeu. Expressei publicamente a oposição ao governo; por isso fui enviado para Auschwitz. Sou um médico. Gostaria de saber se você se casaria fora de sua fé”. Não demorei muito a responder. Em meu coração, sabia que não casaria fora de minha fé, por respeito aos meus pais. Também, não tinha ainda abandonado a esperança com relação a Ainsley. Assim, expressei meus agradecimentos a ele e disse minhas razões. Nunca mais ouvi dele de novo, mas foi um tremendo apoio moral acreditar que havia algumas pessoas decentes lá fora e que eu deveria fazer o máximo para sobreviver.
Umas poucas semanas depois, Magda e eu, junto com muitas outras pessoas, fomos levados para outro campo de concentração. Quando chegamos, dois Kapos estavam encarregados de levar-nos para dentro do campo. Para nosso azar, tomaram liberdades por sua posição de superioridade, nos abraçando e agarrando. Foi embaraçoso e fiquei apavorada. Disseram que lembrávamos-lhes suas irmãs. Logo uma fila foi arrumada e caminhamos para o campo.
Quando entramos no campo, foi uma experiência pavorosa. No meio do terreno havia uma imensa vala. Tivemos que nos alinhar em um dos lados. Em nossa frente, no outro lado, os soldados SS estavam de pé, com seus fuzis apontando para nós. As pessoas ficaram em pânico, temendo que estivéssemos em frente a um pelotão de fuzilamento. Tentei acalmar as pessoas na minha frente com a explicação de que, se quisessem nos matar, isto teria sido feito em Auschwitz. No fim, era só um treinamento militar.
Fomos levados a um prédio onde tivemos que tomar uma ducha e foram-nos dados outras roupas, uniformes com listras cinzentas e azuis. Nós fizemos uma fila para a comida, que foi dada em um prato. Era mais no estilo militar e parecia muito melhor que Auschwitz.
Cedo a noite senti-me cansada e deitei-me em uma dos catres debaixo de um beliche. Enquanto descansava, minha prima correu e estava excitada. Disse-me que dois dos Kapos tinham trazido pão para nós. Não pretendia ir e implorei para não ir, mas ela só correu para fora, dizendo que precisávamos do pão. Apesar de não querer ir, corri atrás dela, para que não ficasse sozinha. Os dois jovens rapazes ficaram felizes em nos ver. Um deles estava segurando minha mão quando de repente as luzes apagaram. Diversas pessoas entraram. Fomos escoltadas de volta ao nosso barracão, mas levaram Magda com eles. Teve que se despir totalmente e esperaram. Pouco depois um oficial SS chegou e minha prima foi surrada com um bastão de borracha. Ouvi-a gritar e senti a sua dor. Em meu coração, sabia que ela queria apenas o bem para nós. Só queria um pouco de pão. Quando terminaram com ela, esperava que viessem me pegar, mas isso não aconteceu. Magda disse-lhes que eu só tinha corrido para lá para chamá-la de volta. Podíamos ver os dois Kapos fora, havia dois postes com uma corda grossa no meio. Cada homem estava amarrado pelos pés e braços e foi deixado lá, pendurado no poste, por horas.
Na manhã seguinte fomos amontoados como sardinhas em um vagão e fomos enviados para um campo de trabalhos forçados. Levou muitas horas para chegar lá. Lembro-me de dizer a Magda que as pessoas eram muito boas, pois tinha caído no sono em cima delas. O que não tinha percebido é que estava dormindo em cima de corpos mortos. Minha prima sofria de dores terríveis da surra. Quando o trem parou, finalmente, no destino designado e a porta abriu, fomos forçados a carregar os cadáveres.
Dormimos no chão em um barracão, com somente um pouco de palha espalhado em volta. A comida era horrível e muito pouca. Para descrever a extensão da fome, uma vez retirei uma migalha de pão da parede da latrina e a comi. Homens e mulheres usavam a mesma latrina. Não havia nada parecido com dignidade humana.
O trabalho era duro. Recebemos uma picareta e tínhamos que cavar uma área montanhosa, para construir uma trincheira. Não recebemos roupas quentes. Embrulhávamos os pés em pedaços de trapos, tínhamos medo de congelamento. Algumas vezes gostaríamos de poder falar com alguém, mas um soldado SS aparecia imediatamente, gritando para parar de falar e continuar trabalhando.
Um dia, Magda ficou doente. Não conseguia ir para o trabalho. Fiquei preocupada o dia todo, o que aconteceria com ela? A mesma coisa aconteceu comigo também. Não havia um médico. Por sorte nossa, no dia seguinte conseguimos ir para o trabalho. As pessoas que ficavam afastadas do trabalho mais de duas vezes, nunca víamos de novo.
Eventualmente, à medida que os russos estavam avançando, este campo teve que ser eliminado. A marcha começou. Ainda era o inverno e estava muito frio. Marchamos o dia todo. Quando algumas pessoas estavam próximas do colapso e os próprios guardas estavam muito cansados, normalmente encontravam um local para nós onde podíamos passar a noite, normalmente em baias, como animais. Estávamos famintos. Lembro que, uma vez, quando marchávamos, reparei em algumas cascas de batatas congeladas na neve. Peguei algumas rapidamente e as comi.
Uma noite, depois de termos sido trancadas em uma baia, uns poucos de nós decidiram que deveríamos tentar escapar. Subimos ao sótão. Estava cheio de forragem. Nos enterramos na forragem. Na manhã, quando os guardas SS vieram nos levar, ficamos no sótão. Na primeira noite, alguém atirou algumas cenouras e foi isso que comemos. Mas na manhã seguinte, um grupo de rapazes, adolescentes fanfarrões, vieram até o sótão. Um a um, nos jogaram pela janela, gritando, “Juden, Juden!” [Judeu, Judeu!]. Caindo dois metros e meio, me concentrei em cair sobre meus pés. Todos ficamos doloridos e machucados. Em pouco tempo, um guarda SS veio e levou-nos de volta para o grupo, e mais uma vez a marcha continuou.
Uma noite, era bem tarde. Estávamos extremamente cansadas e minha prima sentia-se doente. Implorei-lhe para continuar a caminhar. Ela virou-se e disse: “Vera, continue você. Não posso caminhar mais” e caiu. Naquele momento, deitei-me ao lado dela, dizendo-lhe para fingir que estávamos mortas. O primeiro guarda gritou para que levantássemos, continuássemos a caminhar. Quando um segundo guarda veio e quis disparar contra nós, lhe disse, “estão mortas, não desperdice suas balas”.
Imóveis, ficamos ali até que não houvesse mais sons. Naquele momento, disse a Magda que tínhamos que continuar caminhando, ou congelaríamos até a morte. Lentamente rastejamos para fora da sarjeta. Com Magda se apoiando em mim, lentamente caminhamos. De repente percebemos uma luz. Logo percebemos que era uma casa. Neste ponto, não tínhamos escolha. Ninguém disse uma palavra para nós. Ficamos encolhidas embaixo de uma cama e caímos no sono ali. Na manhã, um homem nos cutucou com uma vassoura, gritando, “Juden heraus” (judeus, caiam fora). Rastejamos para fora. Após deixar a casa, jogou algumas migalhas de pão para nós. Parei para pegá-las e comemos tudo. Lembro de pensar que ainda havia alguma humanidade restante nele.
Continuamos a caminhar. Andamos por uma área mais povoada e de repente vimos um policial dirigindo o tráfego. Rapidamente fizemos uma volta e entramos em uma casa. Uma mulher veio a nós e perguntou se queríamos alguma comida. Naturalmente queríamos, estávamos famintas. Ela voltou com duas porções de presunto e purê de batata em pratos de porcelana, com talheres. Não sabíamos exatamente porque estavam sendo tão bons, mas logo outra mulher veio e nos disse que os russos tinham chegado na área e que, se os russos viessem até a casa, queriam que disséssemos que eram boas pessoas, que nos tinham protegido e dado comida. Agora entendíamos a situação em que estávamos. Ficamos felizes, pois finalmente ficaríamos livres.
Passados alguns minutos, soldados russos entraram na casa. O pai ou avô estava sentado com todas as suas condecorações militares em seu uniforme. Um soldado russo fuzilou-o imediatamente. Ficamos com medo. Não sabíamos o que aconteceria a nós. Uma das mulheres veio a mim, implorando para salvar a sua filha, dizendo que um soldado russo a tinha levado para um quarto e que a mataria. Pensando como nos tinham tratado bem, corri para o quarto. Ainda era muito ingênua, não percebia que estava estuprando-a. Comecei a explicar que essas pessoas nos tinham dado comida. Ia pegar sua arma. Minha prima correu para o quarto, me agarrou, deu um tapa na minha cara, e puxou-me para fora. Ela estava tremendo. Perguntou-me: “você não sabe a razão porque ele levou a garota para aquele quarto?” Naquele momento, eu não sabia. Estava tentando salvar uma vida, mas estava em estado de choque. Se não fosse por Magda, teria sido morta.
Também percebemos que corríamos perigo. A liberdade pela qual esperávamos não veio. Não havia lei e ordem. Estávamos sozinhas. Quando a noite veio, dormimos com nossas cabeças cobertas por um xale, para parecer menos atrativas. Mesmo assim, uma noite enquanto ambas dormíamos, um soldado me acordou. Com sua lanterna brilhando nos meus olhos, ordenou para ficar de pé e segui-lo. Eu estava aterrorizada. Gritei e chorei. Minha prima tentou explicar que tínhamos estado em um campo de concentração, que éramos judias. Ele disse que judeu era bom. Então Magda disse-lhe que eu era só uma criança. Neste momento ficou zangado e disse a Magda, “você não é uma criança”, e a forçou a ir com ele. Fiquei esperando atormentada, sem saber o que aconteceria com ela. Voltou logo e disse que não tinha conseguido estuprá-la, pois chorara e gritara muito. Ficou zangado e bateu nela com seu fuzil e deixou-a ir. O medo continuava todos os dias.
Continuávamos procurando por comida. Encontramos uma jovem garota e sua mãe de origem polonesa. Acharam algumas batatas, as cozinharam e insistiram em partilhá-las conosco. Também eram sobreviventes. Nunca pude esquecer delas. Uma vez nos escondemos em uma pilha de forragem para evitar alguns soldados. Devem ter reparado em nós e incendiaram a forragem, para forçar-nos a sair. Um oficial russo mais velho reparou na gente. Disse que parecia com sua filha. Ele mantinha uma camaradagem com uma mulher da mesma casa onde ficávamos. Tivemos sorte dele notar a situação em que estávamos.
Uma tarde encontramos uma jovem garota, também uma sobrevivente. Vinha de uma família muito religiosa. Disse-me como era grata por ter sobrevivido e que quando fosse para casa, esperava achar sua família. Bem, isso não aconteceu. Um soldado russo bêbado a estuprou durante a noite. Na manhã seguinte a garota estava morta, tinha sangrado até a morte. O soldado ainda estava ao lado dela, bêbado.
O oficial russo mais velho se tornou um bom amigo para nós. Algumas vezes trazia alguma comida. Lembro claramente do casaco de inverno bege e branco que me deu, também sapatos, mas, acima de tudo, lembro que provavelmente salvou nossas vidas. Cedo numa manhã, pessoas jovens foram reunidas. Magda e eu fomos escolhidas. Disseram para entrar em um caminhão do exército. Ambas tentamos explicar que não éramos o inimigo, que não éramos alemãs, que éramos sobreviventes judias, mas não fez diferença. Fomos forçadas a entrar no caminhão. Enquanto esperávamos no caminhão, reparamos que nosso amigo, o oficial russo, estava falando com os soldados, e logo depois vieram nos dizer para sair do caminhão. Não sabíamos como lhe agradecer o suficiente. Mas, este homem tinha um coração. Sabia de nosso sofrimento e só queria nos ajudar. Não esperava nada de nós. (...)
Semanas passaram, o clima estava ficando mais brando. Magda achou uma bicicleta. Decidimos procurar em dupla por comida nela. Conseguimos encontrar um pouco de comida e estávamos voltando quando em uma estrada de terra deserta quando ouvimos soldados russos nos chamando. Magda acelerou, pedalando o mais rápido que podia. Os soldados começaram a atirar. Se estavam só atirando para o ar ou se erraram o alvo, não sabíamos. O fato importante é que conseguimos fugir ilesas.
Várias semanas mais passaram, era a primavera. Estávamos imaginando como e quando seríamos capazes de voltar para a Hungria. Tinha medo, mas ainda esperava e rezava por algum milagre que fizesse ver minha família de novo. Em minha mente, não queria acreditar que o mundo permitiu o genocídio sem razão de nosso povo, somente por sermos membros da fé judia. Parecia ser criminoso, tão inacreditável mas, naturalmente, dado o que tinha visto e pelo que tinha passado, havia muitas razões para estar temerosa.
Em um dado momento em maio, nosso amigo, o oficial russo, veio ver-nos. Disse que a ferrovia para a Hungria tinha sido consertada. Disse o momento exato quando um trem estaria saindo. Aconselhou a tomá-lo e seguimos o seu conselho. Sabíamos que só queria o nosso bem. Queríamos muito voltar, apesar de que nunca mais pude chamar novamente a Hungria de lar. Amava o país; era bonito, mas ficava me lembrando da cooperação do governo húngaro com os alemães, e a vontade deles em fazer todas aquelas atrocidades horríveis contra nós.
Chegamos no trem. Foi difícil entrar no vagão de carga. Não havia plataforma; tínhamos que puxar-nos para dentro. Estava repleto de soldados russos, muitos deles bêbados. Com nossas cabeças cobertas – parcialmente cobríamos também nossos rostos – não olhávamos para nada, a não ser para o chão. A única cisa que vimos: soldados bêbados urinando no piso. Depois de várias horas, o trem parou em uma pequena cidade. Saltamos e nos transferimos para um trem de passageiros. Enquanto caminhávamos, procurando um assento, uma mulher cuspiu em frente a nós e disse o seguinte: “esses judeus sujos estão voltando”. Naquele momento fiquei muito feliz por termos sobrevivido e que os anti-semitas sentiam a derrota. (...)
Agora é outubro de 1999. Estamos nos preparando para passar os duros meses de inverno na Florida. Estou terminando minhas memórias. Foram muito difíceis de escrever. Estou cansada mental e fisicamente. É impossível aceitar esta indescritível tragédia que a humanidade deixou acontecer. A despeito de todo nosso sofrimento, sou grata às garotas Freed de Vár utza, Kisvárda. Elas me levantaram e me encorajaram a continuar a caminhar de Birkenau para Auschwitz. Elas tiveram suas grandes perdas, mas ainda assim se preocupavam com outro ser humano.
Na medida em que entramos em um novo milênio, desejo saúde, paz e prosperidade; liberdade para todas as religiões; igualdade para todos.
Fonte: Montreal Institute for Genocide and Human Rights Studies - Holocaust Survivors Memoirs