quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A visita do Ministro das Relações Exteriores britânico Anthony Eden a Moscou: dezembro de 1941

 

  

Visita do Ministro das Relações Exteriores britânico Anthony Eden (centro, mais a esquerda) a Moscou: dezembro de 1941. Fonte: https://www.prlib.ru/en/node/400766

   Em dezembro de 1941, quando as tropas soviéticas começaram seus contra-ataques que deveriam afastar os alemães dos acessos a Moscou, o britânico Anthony Eden iniciou a longa e tortuosa viagem à capital soviética exigida pelas condições de guerra. Enfraquecido pela gripe, o secretário do Exterior passou quatro dias num contratorpedeiro com destino a Murmansk, preso ao leito a maior parte do tempo. Como a cidade portuária do Ártico estava coberta de neblina quando chegaram no dia 12 de dezembro, a delegação britânica não pôde fazer por ar a parte seguinte da viagem. Pelo contrário, tiveram de enfrentar a perspectiva de uma viagem de dois ou três dias de trem até Moscou. Mas enquanto esperavam no navio, o lado soviético providenciou uma surpresa para Eden.

O secretário do exterior empreendeu a viagem porque as relações entre Stalin e seus liados ocidentais permaneciam tensas, apesar das declarações de amizade pelos dois lados. Desde a visita de lorde Beaverbrooke e de Averell Harriman a Moscou em setembro, o líder soviético tinha continuado a insistir no pedido de entregas mais rápidas dos suprimentos do Lend-Lease (programa de ajuda militar) e de toda sorte de ação militar que pudesse tirar um pouco da pressão sobre suas tropas esgotadas - não importando quantas vezes Churchill e outros lhe lembrassem que a Grã-Bretanha não tinha a menor condição de começar a lutar no continente, muito menos considerar a sugestão desvairada de que deveria enviar tropas para a Rússia.

Havia ainda outra questão por que Stalin pressionava: a necessidade de um acordo sobre as fronteiras no pós-guerra. Para desalento de Churchill e Roosevelt, Stalin insistia na definição dos novos contornos geopolíticos do continente após a derrota final de Hitler. Os exércitos russos mal conseguiam manter suas posições nos arredores de Moscou, mas seu líder já sonhava com uma nova ordem europeia que satisfizesse suas ambições territoriais.

Eden se ofereceu para essa missão a fim de tentar amortecer aquelas expectativas e também para manter tranquilas as relações entre esses dois aliados inquietos. Nem ele nem Churchill sabiam que tipo de recepção deveriam esperar, pois Stalin já tinha demonstrado sua obstinação em mais de uma ocasião, embora em geral adotasse um tom mais brando imediatamente após uma discussão mais dura. Ivan Maisky, o embaixador soviético em Londres que regularmente transmitia as queixas do seu líder, acompanhou Eden na viagem e forneceu a primeira indicação do estado de espírito de Stalin.

Depois de terem atracado em Murmansk, Eden continuou a bordo enquanto Maisky ia à cidade tentar providenciar um trem fortemente protegido. De volta ao seu contratorpedeiro, o embaixador soviético pediu uma reunião privada com Eden, e os dois foram para a cabine do secretário do exterior. Maisky colocou uma bolsa preta sobre a mesa e comunicou a mensagem de Stalin. O líder soviético, disse ele, não queria que Eden e a delegação britânica se sentissem "embaraçados' durante a visita pela controvérsia entre a Grã-Bretanha e a Rússia em torno da taxa de conversão do rublo. Como os americanos, os britânicos protestaram muitas vezes contra uma taxa de câmbio que inflava todas as suas despesas na Rússia. Sem fazer nenhuma concessão nessa questão, Maisky explicou que Stalin estava colocando à disposição de Eden rublos suficientes para que a delegação não tivesse nenhum problema durante a visita. Então, enquanto um atônito Eden observava, o embaixador puxou "pacotes e mais pacotes" de notas que colocou em filas sobre a mesa.

"Fiquei boquiaberto diante de tanta riqueza", lembrou o secretário do exterior. Mas teve a presença de espírito de pedir a Maisky que agradecesse a Stalin pela generosidade e assegurasse que a delegação britânica era capaz do dinheiro na mesa.

Maisky ficou visivelmente desconcertado pela polida recusa de Eden, mas quando o secretário do Exterior não quis mudar de ideai, ele reuniu os pacotes de rublos, os colocou de volta na bolsa preta e trancou-a.

Aquilo era típico Stalin: queria parecer conciliador e amaciar o visitante britânico antes das conversações, mas com um gesto tão ostensivamente generoso que deixou Eden numa posição delicada, não lhe restando alternativa a não ser recusar a oferta. O líder soviético provavelmente não fazia ideia da razão por que seu convidado não podia aceitar o dinheiro, pois no seu mundo ele gratificava ou punia qualquer um de acordo com sua inclinação – e nenhuma outra regra se aplicava

No dia seguinte, 13 de dezembro, Maisky voltou a bordo para dar a Eden a notícia que o Pravda trombeteava: a vitória soviética na Batalha de Moscou. Apesar de saber que a luta estava longe de terminada, o secretário do Exterior ficou feliz. "Isso é maravilhoso! Pela primeira vez, os alemães sofreram um revés."

Na viagem de trem que começou no fim da tarde do mesmo dia, Eden se impressionou com a capacidade dos russos de enfrentar o frio impiedoso que chegava a -26°C à noite. O trem especial era equipado com metralhadoras antiaéreas, montadas em vagões abertos entre os vagões de passageiros, e que eram operadas em turnos de duas horas. "O frio que aqueles homens tinham de suportar quando em movimento a uma velocidade razoável através daquelas temperaturas árticas deve ter sido cruel", observou Eden.

Durante uma das paradas ocasionais, quando desceram para caminhar ao lado dos trilhos, ele perguntou a Maisky: "como o seu povo suporta tanto rio?" O embaixador lhe assegurou que as equipes estavam adequadamente vestidas e acostumadas às temperaturas gélidas, ao que Eden acrescentou: bem, os alemāes não estão acostumados a esse frio".

Quando o trem chegou a Moscou na noite de 15 de dezembro, havia pingentes de gelo pendurados nos vagões e a estação estava mergulhada na escuridão. De repente, as luzes foram acesas no local, durante os 14 minutos em que Molotov saudou o seu colega britânico. O ministro do Exterior soviético informou ansioso que tropas soviéticas tinham acabado de expulsar as tropas alemãs de Klin, a 80 km ao norte de Moscou. Então, as luzes se apagaram de novo, e as pessoas se moveram como sombras através do vapor e da fumaça do trem e do blecaute Continuo da capital para evitar oferecer alvos visíveis aos bombardeiros a alemães. A capital não se sentia tão triunfante quanto a proclamação oficial fizera parecer dois dias antes.

        Se Eden tinha alguma dúvida sobre o impacto da melhora da situação militar no estado de espirito de Stalin, ela se evaporou quando os dois homens se sentaram para a primeira reunião na noite seguinte. Já de início, o líder soviético focalizou as suas ambições territoriais paralelamente às outras ideias para o período do pós-guerra, por mais prematura que parecesse aquela discussão. Stalin não iria permitir que Eden fugisse dos temas, limitando a discussão à situação corrente. O primeiro sucesso real do seu exército - conter os alemães nas fronteiras de Moscou e empurrá-los para trás - só fortalecia a decisão de pressionar o hóspede inglês pelos compromissos que ele desejava. Stalin tentaria parecer generoso oferecendo pacotes de rublos. mas a generosidade não se estendia aos vizinhos do seu país, cuja situação e limites de antes da guerra não lhe agradavam.

Mesmo durante os primeiros dias da invasão alemã, quando por toda o Exército Vermelho estava em retirada e uma derrota catastrófica parecia iminente, a liderança soviética havia sinalizado a determinação em reclamar exigências futuras. Em julho de 1941, por insistência do governo de Churchill, Maisky tinha conduzido negociações em Londres com o líder do governo polonês no exílio, o general Wladyslaw Sikorski, destinadas a forçar aqueles vizinhos hostis a restabelecer relações diplomáticas e cooperar na luta contra a Alemanha. As conversações forneceram as primeiras pistas de como o lado soviético pretendia conquistar seus objetivos territoriais.

                Os poloneses, evidentemente, eram a parte prejudicada desde que Stalin juntou forças com Hitler no desmembramento do seu país, de acordo com o pacto Molotov-Ribbentrop. Depois de invadir a Polônia pelo Leste em setembro de 1939, a União Soviética anexou uma grande parte de território que antes fora a Polônia Oriental e deportou mais de 1,5 milhões de poloneses dessas regiões para prisões e campos de trabalho soviéticos. Entre eles, estava o equivalente a várias divisões de soldados poloneses que as forças soviéticas tinham capturado durante a invasão. Muitos milhares de oficiais tinham de desaparecido sem vestígios - mais de 4 mil corpos foram descobertos em 1943 numa sepultura de massa na floresta de Katin, próxima a Smolensk. As vítimas tinham as mãos amarradas atrás das costas e um tiro na cabeça.

O governo do polonês Sikorski queria dois compromissos claros de Moscou: uma declaração de que a divisão nazissoviética da Polônia era nula e sem efeito – o que teria significado, que ao fim da guerra, o país voltaria às suas fronteiras de: antes de 1939; e a libertação de todos os civis e militares polonês deportados e presos. Isso permitiria a formação de unidades do exército polonês na União Soviética que se juntariam à luta contra os alemães.

Mas durante as conversações em julho de 1941, Maisky indicou imediatamente que a ideia do Kremlin de uma Polônia restaurada não estava de acordo com os objetivos dos poloneses. "Expliquei que, tal como o víamos,o futuro estado polonês deveria ser composto somente de poloneses e dos territórios habitados por poloneses", lembrou ele. Pelo que entendiam os negociadores poloneses, essa formulação significava que o lado soviético pretendia manter o controle sobre uma grande parte dos territórios que tinham anexado em 1939, pois os viam como ucranianos e bielo-russos, e já tinham realizado neles a sua própria versão de limpeza étnica. Se esse fosse o critério para as fronteiras no pós-guerra, a disposição ostensiva dos soviéticos de renunciar ao seu acordo com o regime nazista teria pouca significância prática.

Sikorski sentiu-se compelido a concluir um acordo, apesar de estar muito perturbado pela atitude soviética. Como explicou Jan Ciechanowski, embaixador polonês em Washington, "o governo britânico estava pressionando fortemente o general Sikorski para apressar as conversações com os soviéticos, em vez de pressionar os soviéticos a aceitar as condições justas da Polônia". Isso Churchill admitiu nas suas memórias. Apesar de a Grã-Bretanha ter entrado em guerra por causa da Polônia, ele agora estava particularmente interessado em manter o aliado soviético na luta contra os alemães - e, pelo menos de acordo com alguns relatos, ele ainda suspeitava que Stalin pudesse concluir outro acordo com Hitler se as circunstâncias mudassem outra vez. A questão do futuro territorial da Polônia deveria ser adiada até tempos mais tranquilos” escreveu o primeiro-ministro. “Tínhamos a responsabilidade odiosa de recomendar a ao general Sikorski confiar na boa vontade soviética nos futuros tordos das relações russo-polonesas, e a não insistir naquele momento em nenhuma garantia escrita para o futuro”.

 O acordo, concluído em 30 de julho, não incluiu provisões para a mação de unidades do exército polonês em solo soviético nem a anistia dos poloneses ali presos, e restaurou as relações diplomáticas entre os dois países. Mas, apesar de os tratados germano-soviéticos de 1939 terem sido declarados inválidos, a questão territorial continuou sem solução. Em Washington, o subsecretário de Estado, Sumner Welles, declarou que entendia que o acordo "estava conforme a política dos Estados Unidos de não reconhecimento de territórios tomados por conquista". Na Casa dos Comuns, Eden reiterou a posição do seu governo de que não reconhecia as alterações territoriais de 1939, mas acrescentou que isso "não envolve nenhuma garantia de fronteiras pelo governo de Sua Majestade". Para os poloneses, como expressou Ciechanowski, isso foi "a primeira andorinha na alvorada da nova política britânica de conciliação".


Josif Stalin assinando a declaração comum soviético-polaca na presença do primeiro-ministro polaco, general Władysław Sikorski, 4 de dezembro de 1941.



Menos de duas semanas antes da visita de Eden a Moscou, Sikorski também fez uma viagem tortuosa até a capital soviética, voando de Londres, passando pelo Cairo, Teerã e Kuibyshev. Ao se reunir com Stalin nos dias 3 e 4 de dezembro, ele pediu informações sobre os seus oficiais desaparecidos e sobre a implementação da proclamada anistia de todos os prisioneiros militares poloneses, para que pudessem formar a base de uma nova força de luta. Mas só recebeu negativas e ignorância fingi da quando se discutiu o destino dos oficiais poloneses desaparecidos. "Devem ter fugido em algum lugar", declarou Stalin. Sikorski, contudo, conseguiu a anuência do líder soviético para permitir que os poloneses recém-libertados atravessassem a fronteira para o Irã, onde os britânicos tinham prometido fornecer suprimentos para se equipassem novamente como um exército regular. Sob o comando do general Wladyslaw Anders, mais tarde aqueles soldados lutariam valentemente no norte da África e na tomada do mosteiro de Monte Cassino, durante a campanha italiana de 1944.

Por sua vez, Stalin tentou conduzir Sikorski a uma discussão sobre as fronteiras entre a Polônia e a União Soviética no pós-guerra. "Acredito que seria útil se discutíssemos o assunto. Afinal, as alterações que pretendo sugerir são muito pequenas." O líder polonês insistiu que não tinha direito de discutir nem mesmo a menor alteração das fronteiras “invioláveis” do seu país, e Stalin não insistiu.

Quando se sentou na primeira reunião com Stalin em Moscou, no dia 16 de dezembro, Eden também esperava ter sucesso em evitar essa questão politicamente delicada e as novas suspeitas de que seu governo estaria cedendo exigências soviéticas. Em Washington, Roosevelt tentava tranquilizar os poloneses de que era sensível aos seus interesses, e que respeitava o compromisso que ele e Churchill tinham assumido na carta do Atlântico, proclamada em agosto, durante sua primeira reunião de cúpula no mar. Naquela reunião, os dois tinham prometido que não haveria mudanças territoriais "que não se conformem com os desejos livremente expressos dos povos interessados". Ele insistiu com Churchill para não assumir nenhum compromisso com Stalin relativo aos acordos no pós-guerra. Para Eden, quanto menos se dissesse sobre tudo isso em Moscou, melhor.

Stalin não se dispunha a fazer esse jogo. O líder soviético entregou imediatamente a Eden as minutas de dois tratados - uma para a sua aliança militar durante a guerra, e a outra para tratar dos acordos do pós-guerra. Então chocou os seus convidados ao propor um protocolo secreto para o segundo tratado, que definiria o futuro das fronteiras europeias. "As ideias russas já estavam bem definidas", Eden observou ferozmente mais tarde. "Eles pouco mudaram durante os três anos seguintes, pois seu objetivo era assegurar as garantias físicas mais tangíveis para a futura segurança da Rússia." Havia um exemplo recente desses protocolos secretos na redefinição de fronteiras: o pacto Molotov-Ribbentrop.

Apesar de Stalin não estar planejando extinguir o estado polonês na quela vez, a semelhança não terminava aí. Novamente, a Polônia e os Estados Bálticos figuravam como os primeiros derrotados nesse acordo. Para a Polônia, Stalin propôs que sua fronteira oriental deveria correr ao longo da linha Curzon - a linha do armistício sugerida pelo secretário do exterior britânico na guerra Russo-Polonesa de 1919-1920. As vitórias polonesas durante aquele conflito geraram uma fronteira muito mais a leste, significando que, no período entre guerras, a Polônia controlava uma grande faixa de território que o Kremlin cobiçava. Como resultado do pacto Molotov-Ribbentrop, a União Soviética tomou esse pedaço da Polônia e traçou uma nova fronteira bem próxima da linha Curzon original. Agora Stalin desejava tornar permanente essa situação.

Para compensar a perda de território, Stalin sugeriu que a Polônia deveria receber uma grande parte da região leste da Alemanha. Ele também sugeriu a restauração de um estado austríaco separado, privando a Alemanha da Renânia e possivelmente da Baviera, e a criação de um conselho de vencedores que decidiram o que fazer com a Alemanha derrotada. Stalin queria saber o que Eden pensava da possibilidade de a Alemanha pagar reparações pelos danos que estava infligindo. Quanto aos Estados Bálticos, eles seriam engolidos mais uma vez pelo estado soviético, e as fronteiras soviéticas com a Finlândia e Romênia reverteriam ao que eram antes do ataque alemão. Em suma, ele propunha muitos dos termos que iriam figurar nas discussões das grandes potências em Teerã, em 1943, e em Yalta, em 1945.

Eden sabia como tinha de responder, e tentou fazê-lo com o maior tato possível. Seu governo, disse ele, estava aberto a examinar questões como a organização do controle militar sobre uma Alemanha derrotada, e certamente apoiava uma Áustria independente. Dado o impacto desastroso das reparações na guerra anterior, ele se oporia a qualquer esforço de exigência de reparações ao fim desta. Quanto à questão fundamental das futuras fronteiras, explicou que suas mãos estavam atadas. "Antes mesmo de a Rússia ser atacada, o senhor Roosevelt nos enviou uma mensagem pedindo que não entrássemos em nenhum acordo secreto visando à reorganização da Europa no pós-guerra, sem antes consultá-lo", disse a Stalin.

De fato, John Winant, embaixador americano em Londres, tinha recebido instruções para transmitir uma mensagem do secretário de Estado, Cordell Hull, a Eden pouco antes de sua partida para Moscou. Datada de 5 de dezembro, a mensagem acentuava que as políticas do pós-guerra dos dois países e a União Soviética estavam encapsuladas na Carta do Atlântico, e seria "inadequado" para qualquer um dos dois governos "assumir compromissos relativos a termos específicos do acordo do pós-guerra". Acrescentou: "acima de tudo, não deverá haver acordos secretos"

Tendo em mente esses avisos, Eden continuou a enfatizar a Stalin que a Rússia, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos precisavam estar de acordo com relação às questões principais, e que ele não poderia se comprometer sozinho com nada.

"O que dizer da anexação do protocolo secreto?", perguntou Stalin, recusando-se a desistir.

 Quando Eden reiterou que isso exigiria consultas ao seu governo e a Washington, o líder soviético afirmou concordar, dizendo que uma frente unida era crucial para os esforços dos três países. A discussão passou, então, militar. Apesar de naquele caso também haver adiado a questão territorial, pelo menos naquele momento.

 A reunião seguinte lhe mostrou que estava errado. "Stalin começou a mostrar as garras", observou ele. Aparentemente esquecido das explicações anteriores de Eden, o líder soviético pediu de modo direto o reconhecimento britânico para as fronteiras da Rússia de 1941- em outras palavras, as que tinham sido estabelecidas conforme o pacto Molotov-Ribbentrop.

Era a volta à estaca zero e o que Eden descreveu como uma atmosfera "frigida". Ele explicou mais uma vez que não poderia endossar nada semelhante. Observou que Churchill havia declarado antes que a Grã-Bretanha não reconheceria alterações de fronteiras produzidas por guerra - e que isso ocorrera numa época em que a Alemanha estava avançando e qualquer reconhecimento dessas fronteiras teria sido prejudicial para a Rússia.

"Se diz isso, o senhor poderia dizer amanhã que não reconhece que a Ucrânia faz parte da URSS", Stalin retrucou asperamente.

"Isso é uma compreensão totalmente errônea da posição", respondeu Eden. "Não reconhecemos apenas as alterações das fronteiras de antes da guerra."

Stalin não abandonou o tema, insistindo que a recusa britânica deixaria o seu país como um suplicante. "Isso faz parecer que eu devia vir com o chapéu na mão", disse.

Era o Stalin petulante, que se indignava toda vez que suas exigências - não importando o seu alcance - não eram aceitas de imediato. Insistia e insistia para ver o que poderia conseguir. Era uma prévia do Stalin que os líderes americanos e ingleses tornariam a ver outras vezes, à medida que a guerra avançava. Mas o líder soviético sabia quando aliviara pressão, em especial quando sentia que suas táticas agressivas se mostravam contraproducentes. Ele também compreendia instintivamente que, depois de um ciclo de agressões, poderia ganhar pontos quando parecia mais razoável.

Que foi exatamente como os eventos se desenrolaram com Eden. O secretário do exterior percebeu que também ele teria de demonstrar irritação, se esperava que Stalin agisse mais razoavelmente. Voltando ao hotel depois da ríspida sessão, ele decidiu que poderia falar tranquilamente no carro, pois acreditava que aquele era o único lugar onde suas conversas não seriam monitoradas. Disse aos seus colegas britânicos que, uma vez na suíte do hotel, ele iria expressar sua frustração em voz alta para ser captada pelos equipamentos de escuta. Andando para lá para cá na sala, ele fez exatamente isso, afrontando o comportamento soviético e dizendo que teria sido melhor não ter vindo a Moscou. "Minha conclusão foi que, coma maior boa vontade do mundo, era impossível trabalhar com aquelas pessoas, nem mesmo como parceiros contra um inimigo comum", lembrou ele. "Os outros se juntaram ao coro."

Algumas horas depois, Eden recebeu a primeira indicação de que seus anfitriões soviéticos tentavam desfazer aquela impressão. Antes ele pedira para visitar o front, pois queria ter uma sensação mais direta da situação militar – mas o pedido tinha sido ignorado. Mas agora, Maisky estava ao telefone com a notícia de que ele teria permissão para viajar a Klin, que acabara de ser liberada. No carro com Maisky, ele viu aldeias incendiadas, tanques alemães e russos destruídos na luta, e os mortos russos e alemães espalhados sobre os dois lados da estrada. "Os cadáveres já estavam congelados, geralmente nas poses mais estranhas e incompreensíveis: alguns com os braços abertos, outros de quatro, alguns de pé com neve até a cintura", relembrou Maisky.

Eden se comoveu com a visão de seis jovens prisioneiros alemães - "pouco mais que meninos", segundo ele - que haviam sido capturados no dia anterior e tremiam de frio e de medo. "Estavam muito malvestidos, com sobretudos finos, casacos de lã e sem luvas. Só Deus sabe qual será o destino deles, mas eu posso imaginar: vítimas de Hitler."

Durante a viagem de volta a Moscou, Eden reforçou a mensagem que tentou transmitir quando falou para os microfones da sua suíte. Disse a Maisky que se, como parecia, sua viagem terminasse em fracasso por causa da insistência do lado soviético em impor termos que ele não poderia aceitar, somente os alemães ficariam felizes.

Convencido de que os dois lados não seriam capazes de chegar a um acordo, Eden foi à última reunião com Stalin no dia 20 de dezembro levando a minuta de um comunicado curto. Porém, para surpresa do britânico, o líder soviético estava bem mais cordato do que antes. Apesar de ainda pedir reconhecimento das fronteiras que queria, ele disse que agora entendia que o lado britânico tinha primeiro de consultar-se com os Estados Unidos, e que qualquer tratado poderia esperar. Nesse meio tempo, as relações entre seus dois países continuariam a se desenvolver, acrescentou. Ofereceu também um comunicado, segundo Eden, "mais longo e mais direto que o meu”. O secretário do Exterior lembrou que teve uma sensação de alívio – exatamente o que Stalin queria que ele sentisse.

Por fim, Stalin convidou Eden e seu grupo para um jantar no Kremlin. O convidado de honra notou que a refeição era "quase embaraçosamente suntuosa". Registrou que havia borscht, esturjão, "um leitãozinho infeliz", uma variedade de carnes - e, é claro, vinho, champanhe e vodca. O marechal Timoshenko, Eden acrescentou, "parecia estar bebendo desde antes de nos encontrarmos". Aparentemente embaraçado por Eden ter notado, Stalin lhe perguntou: "os seus generais se embebedam"? Eden respondeu que eles raramente tinham oportunidade para tanto.

De acordo com Maisky, Eden sofreu seu próprio momento embaraçoso. Em certa hora, ele perguntou a Stalin a respeito de uma garrafa grande sobre uma mesa com um líquido amarelado. Era brandy de pimenta, mas Stalin sorriu e lhe disse: "esse é o nosso uísque russo". Quando Eden disse que gostaria de experimentar, o líder soviético Ihe ofereceu um copo grande. Ele tomou um gole grande, ficou vermelho e engasgou, "os olhos quase saltando das órbitas', relembrou Maisky. Stalin então anunciou: "só gente muito forte é capaz de tomar uma bebida tão forte. Hitler está começando a sentir”.

Eden não mencionou esse incidente nas suas memórias, preferiu observar que sua visita terminou com uma "nota amistosa". Mas o banquete o deixou com "uma sensação de irrealidade, que não se deveu à fome nem à penúria no nosso meio, nem aos exércitos alemães, tão próximos que quase ouvíamos a sua artilharia". O que de fato o incomodou foi algo mais profundo. "Naqueles salões dourados a atmosfera era insalubre, porque onde um homem domina, todos os outros temem", observou.

Ele também percebeu que, apesar de conseguir evitar todos os compromissos que Stalin exigia, sua visita representou apenas o primeiro ato de um drama que teria continuação. O líder soviético não se dispunha a desistir das suas ambições territoriais, observou ele no telegrama para Churchill, "e devemos esperar pressão continua quanto a essa questão".


Transcrição: Daniel Moratori (blog Avidanofront.blogspot.com)


Fonte: NAGORSKI, Andrew. O pior de todos os mundos. In: NAGORSKI, Andrew. A Batalha de Moscou. 1ª. ed. : Editora Contexto, 2013. p. 291-301.