sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O massacre de judeus do gueto de Kaunas, Lituânia (1941)

Dois meninos orfãos puxam e empurram uma carroça no gueto de Kovno. Seus pais foram assassinados no início da guerra. Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa11965

Dois guetos com cancelas e arame farpado tinham sido implantados, em julho de 1941, no arruinado distrito de Slobodka, de Kaunas, para os judeus dessa cidade da Lituânia central, um Gueto Grande, que abrigou aproximadamente 27.500 pessoas, e um Gueto Pequeno, ligado por uma ponte de madeira através de uma rua intermediaria, que confinava outras 2.500. Um hospital havia sido montado em diversos edifícios do Gueto Pequeno, com maternidade, alas médicas e cirúrgicas; pacientes com doenças contagiosas foram alojados num edifício separado, de dois andares. Um orfanato também foi instalado no Gueto Pequeno para as várias centenas de crianças judias cujos pais já haviam sido assassinados pelos alemães ou em pogroms.

Em 4 de outubro de 1941, o sabá depois do Yom Kippur, um destacamento do Einsatzkommando 3, de Jäger, tendo à frente o Obersturmführer Joachim Hamann, começou a destruir o Gueto Pequeno. Um rabino, Ephraim Oshry, foi testemunha ocular:

 

De manhã cedo, uns 50 soldados alemães, juntamente com uns 100 colaboradores lituanos muito mais do que víamos habitualmente, o que achamos aterrorizante se amontoaram no Gueto Pequeno e expulsaram as pessoas, sem exceção, de suas casas. Escorraçaram as pessoas da cama, sem mesmo lhes dar a oportunidade de se vestirem. Nas ruas, empurravam os velhos e fracos, as crianças, as mulheres e homens. Usando as coronhas dos fuzis como porretes, espetavam as pessoas a torto e a direito. O sangue jorrava como água. Os judeus foram perseguidos até a praça Sajungos, outrora o mercado de cavalos de Sobodja. Ali, os alemães começaram a dividir os judeus da maneira como sorteiam carneiros para o abate: “Direita! Esquerda!” Morte! Vida!

 

A seleção durou várias horas. Pessoas que apresentavam salvo-condutos de trabalho - apenas cinco mil tinham sido emitidos nos dois guetos inteiros - eram separadas das que não os possuíam. Pacientes foram evacuados das alas médica e cirúrgica. Na ala da maternidade, o jovem a advogado de Kaunas Avraham Tory registrou em seu diário da época: "Os alemães queriam ver os bebês que tinham acabado de nascer. Alcançaram a sacada da janela em que os bebês estavam deitados e ficaram ali, por algum tempo, observando os bebês. Os olhos de um dos alemães se enevoaram. "Nós os deixaremos ficar?” perguntou ao amigo. Os dois saíram do cômodo, deixando as mães e os bebês. Dessa vez eles sobreviveram".

Os órfãos não tiveram tanta sorte, continua Tory:

 

Os alemães, então, passaram a apanhar as crianças do abrigo feito para elas. Das 153 existentes, apenas 12 foram deixadas na casa. Foram somente esquecidas. As enfermeiras também foram tiradas. As crianças que estavam só com roupa de envolver foram levadas para fora e colocadas no chão do pátio de pedra do hospital com os pequeninos rostos voltados para o céu. Soldados do terceiro pelotão da polícia alemã passaram entre elas. Pararam por um momento. Alguns chutaram os bebés com as botas. Os bebês rolaram um pouco para o lado, mas logo em seguida recuperaram a posição de barriga para cima, os rostos voltados para o céu. Foi um raro espetáculo de crueldade e indiferença. Um caminhão pesado se aproximou. Primeiro as crianças e depois as enfermeiras foram lançadas dentro dele. O caminhão foi coberto com uma lona e partiu em direção do Forte IX.

 

Os judeus do Gueto Pequeno que tinham sido selecionados foram formados em coluna de cem e saíram. As pessoas com salvo-condutos de trabalho que haviam sido poupadas foram mandadas pela ponte para o Gueto Grande. William Mishell observou a seleção do Gueto Grande. "Um terrível drama humano estava se desenrolando diante dos olhos dos judeus de ambos os lados da cerca”, recorda. "Era claro: as pessoas do lado ruim estavam sendo levadas para o Forte IX, para uma execução em massa. Todos os de ambos os lados da rua começaram a gritar e os do lado do Gueto Grande procuravam desesperadamente ver de relance os entes queridos que estavam sendo levados embora.” Em seu resumido relatório de 1 de dezembro de 1941, Jäger relacionaria “315 homens judeus, 1.107 mulheres judias, 496 crianças judias” executados em 4 de outubro de 1941 no Forte IX, sustentando absurdamente que a seleção foi uma “ação punitiva pelo fato de um policial alemão ter sido morto a tiros no gueto”.

Mas nesse dia foram mortos mais do que os que marcharam ou foram de caminhão para o Forte IX. Tinha havido sessenta e sete pacientes, médicos e enfermeiras no edifício do hospital de doenças contagiosas, naquela manhã. Um número desconhecido de residentes sãos do Gueto Pequeno havia-se juntado a eles ali, pensando que podia encontrar toda proteção. No começo da Aktion, os alemães tinham trancado os portões do hospital a pacientes e fugitivos da mesma forma. Transferiram para o hospital os pacientes cirúrgicos que tinham estado bastante doentes para comparecer à seleção e depois, pregaram as portas e janelas com tábuas. Puseram dez judeus cavar uma cova no pátio do hospital. Tory descreve o que se seguiu:

 

Defronte ao prédio do hospital, no outro lado da cerca, se situava uma fábrica de casaco de peles chamada Lape. Podia-se ver claramente, desse lugar, o pátio do hospital. Os trabalhadores da fábrica, nesse dia, viram dali os dez judeus cavando a cova; viram como os residentes da casa dos idosos foram descidos para ela, como pacientes foram jogados dentro dela e depois fuzilados em seu interior; viram como criancinhas também foram jogadas ali, assim como pacientes que mal se aguentavam em pé... À uma da tarde, podia-se ver fumaça subindo do edifício do hospital. Mais tarde, as chamas cresceram, saindo dele: o hospital ardeu. O fogo queimou por todo o dia e à noite. Pacientes, equipe e fugitivos, assim, foram queimados vivos.

 

Se não tivessem compreendido antes, as pessoas do gueto de Kaunas sabiam agora que nada as protegia da morte e que outras Aktionen se seguiriam. Começaram a se afastar umas das outras com um gracejo em iídiche, que o rabino Oshry relembra: "Auf Wiedersehn in yenner velt" - "Vejo você no próximo mundo". Mais tarde, em outubro de 1941, começaram a correr de novo, no gueto, rumores de grandes fossos sendo cavados no Forte IX por prisioneiros de guerra russos. Os otimistas especularam que eram armadilhas para tanque que antecipavam um contra-ataque do Exército Vermelho; os realistas sabiam que se destinavam a sepulturas em massa.

Cena de rua no gueto de Kovno. A força policial judaica do gueto de Kovno foi criada por ordem das autoridades de ocupação alemãs em julho de 1941, mesmo antes de o gueto ser selado.
Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1047786

O Dia Negro, como os sobreviventes o chamariam, veio mais para o fim do mês, com uma ordem para todo o mundo no gueto comparecer á praça da Democracia, às seis da manhã de 28 de outubro de 1941, ou ser fuzilado. As pessoas tinham de se apresentar com suas famílias conforme suas atribuições profissionais: o conselho do gueto com um emblema; os trabalhadores que construíam uma base aérea para a Luftwaffe fora de Kaunas com outro; curtidores de couro, construtores de estrada, peleteiros, bombeiros, funileiros, cada um tinha de ser identificado como tal. Mishell trabalhava para conselho judeu e seu cunhado trabalhava na guarnição da base aérea, e tão crucial a família julgou a decisão sobre o emblema a ser ostentado que ficaram em claro a noite inteira debatendo-a, com a conclusão final de as pessoas que trabalhavam para os militares alemães seriam consideradas mais valiosas, recaindo pois a escolha na posição da base aérea. “Ninguém do gueto pregou um olho na noite de 27 de outubro, registra Tory. "Muitos choraram amargamente, muitos outros recitaram salmos. Houve também pessoas que fizeram o oposto: resolveram ter um bom momento, festejar e se fartar de comida, torrar toda a sua provisão. Moradores cujos apartamentos estavam abastecidos de vinhos e bebida beberam tudo o que puderam e até convidaram os vizinhos e amigos para essa macabra festa, “a fim de não deixar nada para os alemães”.

Como foi ordenado, vinte e oito mil pessoas deixaram suas portas destrancadas,fixaram avisos na porta se estivesse dentro alguém doente demais para se deslocar e caminharam pelas ruas do gueto nessa manhã, “muito fria”, lembra Mishell, “um típico dia de outono, com fina camada de neve cobrindo o terreno. Estava ainda escuro e o ar se mostrava extremamente úmido. As últimas estrelas visíveis desapareceram gradualmente, enquanto a multidão começava a crescer. Podiam-se ver mães com os filhos nos braços, pessoas idosas que mal conseguiam andar, crianças pequenas segurando a mão das mães, adultos dando apoio aos pais mais velhos ou aos avós, e até inválidos apoiados em bengalas. Algumas pessoas incapazes de caminhar eram transportadas em macas”. Tory descreve isso gravemente, como "uma procissão de gente enlutada, sofrendo consigo mesma”.

Um grupo de meninos segurando uma criança pequena no gueto de Kovno. 
Fonte:https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa11952

Todo o mundo ficou esperando por três horas, enquanto a aurora finalmente irrompia. Tory viu, então, que “a cerca do gueto foi rodeada de metralhadoras e por um pesado destacamento de policiais alemães armados, comandados pelo capitão [Alfred] Tornbaum. Eles tinham também, à disposição, batalhões de guerrilheiros lituanos armados. Uma multidão de espectadores lituanos curiosos havia-se reunido nas colinas que dominavam o gueto. Acompanharam os acontecimentos, participando na praça com um grande interesse não isento de prazer, e não saíram dali por muitas horas”. O robusto e brutal SS-Hauptscharführer Helmut Rauca chegou às nove horas com o representante chefe da Gestapo, capitão Heinrich Schmitz, Tornbaum e o capitão SA Fritz Jordan.

Kauca, com sua farda verde-acinzentada, carregando um bastão, se colocou numa elevação num extremo da praça e a seleção começou. De luvas pretas, apontava com um dedo a esquerda e a direita, dirigindo grupos e famílias. Por algum tempo, não ficou claro que lado significava a vida e que lado a morte, e as pessoas às vezes pediam para mudar. Se a mudança era para a direita, diz Tory, “rindo sarcasticamente, Rauca a consentia”. Logo em seguida, como os doentes e idosos se acumularam no lado direito, o lado que significava a morte se tornou claro. “De quando em quando, Rauca se regalava com um sanduíche... ou apreciava um cigarro, realizando todo tempo seu trabalho perverso sem interrupção”. Às vezes, um auxiliar trazia um pedaço de papel que mostrava uma contagem dos mandados para a direita - eles eram rapidamente deslocados para o vazio Gueto Pequeno - o que indicava que Rauca tinha uma cota a preencher. Pessoas morriam à espera dessa escolha na praça. Como o dia passava e as contagens lhe mostrava pouco de sua cota, Rauca escolhia tanto pela aparência como pelo salvo-conduto de trabalho ou especialidade. Todos os quinhentos trabalhadores do turno da noite da base aérea que, atordoados e exaustos, tinham vindo diretamente do trabalho para a praça da Democracia ele mandava para a direita, mas os bem-dispostos trabalhadores do expediente diurno ele mandava para a esquerda.

Soldados alemães se preparam para um ataque no gueto de Kovno, enquanto alguns moradores judeus observam.
Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1047792

A seleção se prolongou pelo dia todo. “Estava começando a escurecer”, escreve Tory, “e ainda milhares de pessoas permaneciam de pé na praça. O capitão Jordan então abriu outro local de seleção. Foi auxiliado pelo capitão Tornbaum”. A polícia do gueto judeu tentou deixar passar pessoas de um lado para o outro e, às vezes, conseguiu. Um deles salvou desse modo o cunhado de Michel, sua mulher e filho.

Estava escuro quando os alemães concluíram a seleção. Cerca de dez mil pessoas tinham sido transferidas para o Gueto Pequeno, onde se instalaram nos frios edifícios para passar a noite. As outras voltaram para a casa, diz Tory, “famintas, sedentas, oprimidas e desalentadas... a maioria enviuvada ou órfã, separada de um pai, de uma mãe, de filhos, irmão ou irmã, avô ou avó, tio ou tia. Um profundo pesar desabou sobre o gueto. Em cada casa, passara a haver cômodos vazios, camas desocupadas e os pertences dos que não haviam voltados das seleções. Um terço da população do gueto fora abatida. Todas as pessoas doentes que haviam permanecido em suas casas de manhã haviam desaparecido. Haviam sido transferidas para o Forte IX durante o dia”.

Na manhã seguinte, foi a vez dos dez mil. Um adolescente fugiu da carnificina resultante e voltou para Kaunas a fim de informar o conselho judaico. O resumo de Tory reflete o relato de testemunha ocular do rapaz:


A procissão, que somava umas 10.000 pessoas, e proveniente do Gueto Pequeno para o Forte IX, durou do amanhecer ao meio-dia. As pessoas idosas, e as que estavam doentes, sucumbiram na beira da estrada e morreram. Tiros de advertência eram dados incessantemente ao longo de todo o caminho e em torno do Gueto Grande. Milhares de curiosos lituanos se juntaram nos dois lados da estrada para assistir ao espetáculo, até a última das vítimas ser engolidas pelo Forte IX.

No forte, as desventuradas pessoas foram imediatamente atacadas pelos matadores lituanos, que as despojaram de todos os objetos de valor - brincos, braceletes de ouro. Obrigaram-nas a se despir, empurraram-nas para os fossos que tinham sido antecipadamente preparados e fizeram o fogo, para dentro do fosso, com metralhadoras ali previamente colocadas. Os assassinos não tinham tempo de atirar em todo o mundo de cada lote antes de o próximo chegar.

Era-lhes concedido o mesmo tratamento dos que os tivessem precedido. Eram empurrados para dentro do fosso, sobre o topo dos mortos, dos agonizantes e dos ainda vivos do grupo anterior. Assim continuou, lote após lote, até os 10.000 homens, mulheres e crianças terem sido chacinados.


Jader listou o massacre de 29 de outubro de 1941, no Forte IX, como de 2.007 homens judeus, 2.920 mulheres judias, 4.273 crianças judias, justificando-o como “remoção do gueto de judeus excedentes”.

Enquanto os judeus de Kaunas estavam sendo submetidos à seleção e assassinados aos lotes no Forte IX, Himmler estava pretendendo desfrutar de uma semana em Schönhof, a residência de caça do ministro alemão das Relações Exteriores, Joachim von Ribenntrop. O ministro das Relações Exteriores italiano, conde Galeazzo Ciano, era o hóspede de honra, e o massagista de Himmler, Felix Kersten, também era hóspede. Em 26 de outubro de 1941, o grupo abateu 2.400 faisões, 260 lebres, 20 gralhas e um corço. "O conde Ciano, sozinho, derrubou 620 faisões", escreve Kersten: “foi o campeão. Ribbentrop, 410 faisões, Himmler, somente 95. Himmler disse a Kersten que só se havia juntado à caçada porque “o Führer desejara expressamente que ele o fizesse”. Murmurou, sobre o sucesso de Ciano: “Quisera que os italianos na África fossem tão bons atiradores.. Onde não há perigo, os italianos são heróis”. Depois do jantar dessa noite, Ciano disse a Kersten em particular: “A guerra durará muito tempo”. Kersten acrescentou: “e Ciano observou que nós éramos os únicos a partilhar essa opinião. Aqui em Schönhof, todo o mundo está dizendo que a guerra acabará logo”.

No fim da caçada de Schönhof, na noite de 28-29 de outubro de 1941, enquanto os dez mil de Kaunas estavam fazendo suas camas nos frios edifícios do Gueto Pequeno, sabendo o que a manhã lhes traria, Kersten falou com Himmler sobrea caça enquanto lhe fazia uma massagem:


Eu disse que a adorava e que nunca me sentia tão bem como na caça de tocaia. Tornava-me uma pessoa totalmente diferente, quando estava ao ar livre, espreitando o cervo horas a fio, e continuava a colher o benefício desses dias de caça por um considerável tempo depois. 

Himmler respondeu que era certamente a melhor parte da caça, mas o objetivo real da caça de tocaia, dar um tiro num desventurado cervo, contrariava a sua natureza. “Como você pode encontrar qualquer prazer, sr. Kersten, atirando por trás de um esconderijo em pobres criaturas que pastam à beira de um bosque, inocentes, indefesas e confiantes? Pensando bem, é puro assassinato”.


TRANSCRIÇÃO: Daniel Moratori
FONTE: RHODES, Richard. Mestres da Morte: A invenção do Holocausto pela SS Nazista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 210-215 p.