Uma crosta de sangue ressequido recobre seu rosto. Tem de esfregar com força o olho direito para desgrudar as pálpebras. Lentamente, os dedos apalpam a profunda ferida da fronte. Durante alguns segundos ele se pergunta o que teria podido provocar tamanho corte... depois as imagens e os sons invadem sua cabeça. Ele quer dizer:
- Foi uma garrafa... uma garrafa que me atingiu!...
Mas nenhuma palavra se forma, não brota nenhum som. Ele vai gritar. A garganta infla-se. Um pigarro apenas. Um sopro de ar. Nada. O silêncio. A mão hesita sobre os lábios, ele se surpreende, sente a carne intumescida, rachada, arrebentada. Lábios desmesurados, lábios gigantescos. Aos poucos volta o suor - o último suor - que dissolve o sangue ressequido sobre a sua face.
Ele está deitado sobre o lado esquerdo.
Gritos distantes e difusos chegam até ele. O trem está parado; o seu vagão silencioso. A mão desliza sobre o peito nu, pousa no chão, encontra um joelho, uma outra mão, uma... como se tivesse sido queimada, ela se retrai e procura refúgio no peito que acaba de deixar. Treme de medo. A pele, coberta de suor, de repente fica gelada. Em menos de um segundo ele passa pelo martírio da sede, da fome das crispações, das coceiras e, sobretudo, desse zumbido dentro de sua cabeça, que vai crescendo como um trovão, rói, tortura, e que só se manifesta entre os fracos e os loucos que não querem morrer. A vontade impede os reflexos. O corpo inteiro, músculos e nervos, desaparece diante dos olhos. O homem é somente um olho. Um milhão de facetas em cada globo. Pupila ofuscada. Olho inflamado e aguçado. Pela primeira vez desde a partida, o olho vence a penumbra, essa névoa espessa que substitui o pouco ar do vagão de gado, e consegue ver o chão. O chão coberto de cadáveres misturados. Soalho de cadáveres. Cama de cadáveres sobre a qual ele acorda.
André Gonzales se endireitou. Na sua semi-consciência, imagina mais do que vê esse montão de corpos. Está horrorizado de ter que pisar sobre esses... Os dedos agarram uma argola chumbada na parede metálica. O braço se crispa, ergue o busto e os quadris. Os pés procuram um apoio contra a parede de ferro, escorregam, e encontram um lugar entre duas pernas nuas. André Gonzales chora, imobilizando-se num canto do vagão. Ele sufoca. Não suporta o calor das chapas de ferro. De repente ele corre levantando bem alto os joelhos e desaba contra a porta corrediça. Aproveita uma fresta da porta para respirar o ar puro que vem de fora. Dentes contra o ferro. Ar pesado e espesso. Boca escancarada.
As narinas, bloqueadas, compartilham os odores, esforçam-se para não sentir o mau cheiro do produto dos intestinos esvaziados. Espumas e vômitos. Miasmas venenosos, fétidos e sufocantes.
- Respirar. Relaxar-se. Respirar. Rezar mais uma vez. Não olhar para baixo. Respirar e beber. Beber alguma coisa para soltar as crostas que endurecem a língua, cobrem o céu da boca, empurram os lábios para fora.
André Gonzales se levanta, firma os pés nesse tapete que ondula com seus passos e desabotoa as calças.
- Beber.
A urina que ele engole parece-lhe fria e adocicada.
Ajoelhou-se sobre umas costas maciças.
- Não desmaiar, não dormir. Deitar-se é morrer. Morrer aos dezoito anos. André, desde ontem você tem dezoito anos. E os outros? Todos os outros que estão debaixo de você, que idade teriam? Não! Não procurar saber. Não pensar neles. Não!
Ele está surpreso por haver escutado o último "não". Ele pode falar! Para se certificar, André Gonzales repete esse "não". Não! Não!
- Não pensar neles. Sair deste vagão...
De calças curtas e sandálias de corda ele sobe de rochedo em rochedo com seus colegas do Colégio Saint-Udo de Ax-les-Thermes. O "instrutor da excursão" estende a mão para ajudá-lo a atravessar o último obstáculo. Catrapus! A água gelada do Ariège chicoteia seu corpo comprido e magro de adolescente. Esta lembrança e todas as outras cenas de infância que se atropelam por trás dos seus olhos lhe dão vida, sacodem seu torpor. Agora ele reza com o fervor meio amedrontado que lhe foi inculcado pelos frades das Escolas Católicas de Saint-Aubin, em Toulouse. Atravessa as campinas, mata a sede nas torrentes, ladeia as manadas de cavalos e rebanhos de carneiros que descem das pastagens de Puymorens e de Andorra. Feno cortado, chocalhos e, sobretudo, o perfume estranho - enxofre e camomila - que se desprende da bacia de Ladres e das oitenta e três fontes alcalinas de Ax. Isso tudo se mistura, se confunde, desemboca nos plátanos do Boulevard de Estrasburgo, onde ele foi preso com os bolsos atulhados de panfletos, no dia 21 de abril de 1944.
Ele chora. Uma nova angústia, mais densa do que os primeiros temores, dissipa, até mesmo, o rosto de sua mãe. O punho golpeia a porta corrediça:
- Socorro! Água!
Perto dele, um estertor, apenas perceptível, lhe responde. Ele gostaria de gritar de alegria. O coração se acelera. Várias vezes ele pergunta:
- Tem alguém?
Uma massa escura intercepta a nesga de luz que entra por uma fresta da lucarna esquerda, da parte da frente. André Gonzales, dentes cerrados, quer evitar uma briga, custe o que custar. Ele pensa: "Talvez seja o sujeito que ainda há pouco me acertou com a garrafa." Recua, pisando nas carnes mortas, comprimindo caixas torácicas que exalam o seu último suspiro num silvo rascante.
- Você está aí. Você está vivo. Eu vi. Diga alguma coisa! Ele se agacha, lá atrás, no canto direito, pronto para saltar se for atacado, ignorando o líquido imundo no qual suas mãos mergulham.
- Diga alguma coisa!
Ele distingue o homem que se aproxima: fantoche desarticulado à procura de equilíbrio. Faltam três passos. Dois. A silhueta se desmancha, se desmorona. Ruído surdo: pá caindo na areia.
Delicadamente André Gonzales segura-lhe a cabeça entre suas mãos. É um rapaz... talvez de dezoito anos, como ele. As duas pequenas pupilas, perdidas nessa espantosa inchação negra, semeada de pústulas, se animam:
- Água!
- Pobrezinho, não tenho nada. É preciso respirar. Vem. Vamos até a porta; tem uma fresta. Eu, eu bebi minha urina. Daqui a pouco você vai ver...
Eles avançam de quatro para o meio do vagão.
- Assim! Devagar. Profundamente. Encha bem os pulmões.
Ele se volta para André Gonzales e murmura:
- Obrigado. Obrigado. Estou melhor. Mas tenho um amigo que está ali, onde eu estava... Ele não está morto. Isto é, ainda há pouco, quando eu me mexi, ele também se mexeu e eu senti os seus dedos na minha perna.
- Vamos até lá, nós dois juntos. Mas, antes, ainda um pouco mais de oxigênio.
Cinco minutos depois, os três únicos sobreviventes do vagão metálico estão reunidos perto da porta corrediça. Tal como André Gonzales, os dois rapazes também beberam suas urinas. O último a ser reanimado era o mais tagarela:
- Eles nos fecharam aqui dentro para nos matar. Vão continuar o passeio até que estejamos todos mortos. Em Compiègne puseram-nos cem em cada vagão. Aqui somos apenas três sobre-viventes e nos outros vagões talvez todos estejam liquidados. Fizeram de propósito. Queriam que nos amotinássemos. Queriam que ficássemos sem ar. Quanto a mim, eu digo para vocês: este trem é o trem da morte. Nenhum de nós escapará vivo. Vocês compreendem: "O Trem da Morte".
Transcrição: Daniel Moratori (avidanofront.blogspot.com)
Fonte: O Trem da Morte - Christian Bernadac - pg 11-15
Ver mais sobre o Trem da Morte:
O Trem da Morte - O transporte dos deportados de Compiègne com destino a Dachau.
Ver mais sobre o Trem da Morte:
O Trem da Morte - O transporte dos deportados de Compiègne com destino a Dachau.
PARA CONHECIMENTO DE TODOS HITLER CONHECEDOR DAS TORTURAS DE TODAS AS IDEIAS DE TORTURA FORAM COPIADAS DA EPOCA DA INQUISIÇÃO HA UM LIVRO SO SOBRE ESTE ASSUNTO; INQUISIÇÃO
ResponderExcluirAnaLu, todas as pessoas podem conhecer as torturas feitas durante a Inquisição, e isso não difere de Hitler. Mas tome cuidado com o tipo de literatura sobre o Holocausto que lê.
ExcluirAcho este assunto muito interessante, sempre estou atenta a relatos sobre a segunda guerra e o holocausto vejo reportagens documentários e filmes, posso dizer que entendo bastante sobre o assunto em questão, o sofrimento que essas pessoas passaram foi surreal mais acho que não devemos nos preocupar somente com o Holocausto existiram e existem ate hoje grandes atrocidades cometidas contra o ser humano que são desconhecidas ou simplesmente as ignoram , o holocausto não foi e nem será infelizmente a primeira vez que os direitos humanos foram violados . Muitos no nosso pais ignoram o Bullying mais esse é o começo de grandes atrocidades ocorridas no mundo atual e passado, temos que repudiar qualquer tipo de pré conceito de ódio e de idolatria, a grande maioria não querem ver outro holocausto mais temos que lembrar que Hitler ja foi a minoria conseguiu matar 11 milhões de pessoas. Não podemos simplesmente esquecer dessas 11 milhões de pessoas mais devemos nos preocupar e priorizar métodos não preconceituosos, indignação da população tem resultado nunca pense que sua opinião não vai mudar nada você e parte do todo. Há pessoas que idolatram Hitler e seus métodos, não consigo imaginar alguém idolatrando o principal responsável por mortes desumanas, métodos de tortura, sofrimento Hitler mesmo não conseguia comprovar que era da "raça" ariana. Eu não sou negra, não sou judia, e não tenho nenhuma descendência de pessoas assim na minha família ate a quarta geração mais se eu tivesse me orgulharia muito pois o que eles sofreram toda a perseguição ocorrida ate hoje mostra-me que eles são fortes de corpo e espírito,e BRASILEIROS NAZISTAS E PRECONCEITUOSOS EM GERAL SOMOS UMA MISTURA DE ETNIAS DE CORES DE CRENÇAS, NÃO SE ACHE MELHOR QUE O OUTRO POR QUALQUER RAZÃO QUE SEJA SOMOS TODOS UM PERTENCENTES A UMA SÓ RAÇA A HUMANA !
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