terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Hiroshima: Memórias De Um Sobrevivente




Desejo apagar esta repugnante e desagradável lembrança de minha memória. O seis de agosto vem de novo este ano [1993], como sempre. Sei que está é a minha última chance para registrar, em três partes, o que sofri.



No fatídico dia de 6 de agosto de 1945, eu era um terceiroanista do Departamento de Ciências, Faculdade de formação de professores de Hiroshima (hoje em dia, a licenciatura em matemática da Universidade de formação de Professores de Hiroshima). Em meados do meu primeiro ano [1943], ouvíamos muitas vezes que as condições da guerra estavam piorando e que a frente de guerra estava se expandindo sem limites. Quase todos os estudantes foram recrutados para o exército. Mas ainda havia alguns na faculdade, pois éramos aspirantes a Professores no futuro. Mas a situação mudou gradualmente. Estudantes de ciências humanas foram também recrutados, somente deixaram ficar os estudantes de ciências naturais como nós.

A guerra continuou a piorar. Finalmente fomos mobilizados em abril, como trabalhadores no estaleiro Mitsubishi na vila de Eba, na cidade de Hiroshima. O estaleiro construía transportes de tropas da classe de 10.000 toneladas. A primeira tarefa que me foi designada foi a de soldar placas de aço, usando volumosos macacões feitos de um tecido duro, contendo chumbo. Mas depois de um pouco, fui transferido para uma posição de treinamento para estudantes do ginásio Shudo e do curso secundário da Escola de Comércio de Hiroshima. Nosso alojamento era um hotel chamado Kinsuikan, situado em Miyajima, um local famoso por sua paisagem. Íamos diariamente ao estaleiro de barco. Levava uma hora para irmos. Estávamos sempre expostos aos perigos de ataques aéreos feitos por caças saindo dos porta-aviões americanos e ao contato com minas. Tínhamos prontos pedaços de tábuas de madeira no barco, para substituir os coletes salva-vidas. Duas horas gastas no ir e vir eram preciosas para descansar e ler livros. Quanto a comida, estávamos sempre com fome. Arroz misturado com soja triturada, ou bolinhos de Eba feitos de trigo moído e estragão eram uma festa para nós.


O seis de agosto

Saímos do porto de Miyajima e chegamos ao estaleiro de Eba uns poucos minutos depois das oito horas, como sempre. Estava quente e o céu limpo, sem nuvens. Pouco antes das oito, uma sirene de ataque aéreo soou. Nos abrigamos enquanto reclamávamos, porque já estávamos acostumados à sirene. Logo o alerta foi cancelado. O encontro da manhã foi feito como sempre e uma chamada dos alunos do ginásio foi feita também. Fui até o segundo andar acertar alguns papéis. Estava conferindo a presença dos alunos enquanto mantinha minhas costas diretamente para o epicentro. De repente, uma luz azulada brilhou como um arco voltaico, como a luz de uma máquina de solda, ou como magnésio queimando. O mundo ficou branco.

De forma instintiva, pensei que tivesse havido um grande acidente na companhia de fornecimento de gás no distrito de Kannon ou na subestação transformadora em Misasa. Corri para a janela que estava bem aberta ao exterior, para ventilar. Olhei na direção do possível acidente. Observei uma nuvem amarela-avermelhada subindo como fogo de artifício, alto para o céu, cercada por fumaça negra como carvão. (Naquela época, como não tinha idéia do que seria uma bomba atômica, nunca imaginaria que uma nuvem de cogumelo estava para surgir). No mesmo momento, de longe, casas voavam um pouco e então caiam, esmagando-se no chão como peças de um jogo de dominó. Era igual a branca arrebentação de uma onda, vindo em minha direção, enquanto ficava em pé na praia. A onda se aproximou de forma inabalável (mais tarde, isto seria chamado de onda de choque da explosão). Me senti terrível pela primeira vez. Tinha que fazer alguma coisa, o segundo andar onde estava logo seria esmagado. Um amigo próximo, o Sr. Soma ou o Sr. Yoshikawa gritaram algo. Corri para debaixo da mesa e segurei a respiração, esperando que alguma coisa acontecesse. Em apenas alguns segundos eu vi o relâmpago e me enfiei debaixo da mesa.

Então, de repente, o chão desabou com um imenso som. Uma maciça nuvem de poeira se levantou. Naquele momento, eu congelei. Senti que a bomba tinha explodido logo na minha frente. Mas nenhum explosão aconteceu. Senti sem sombra de dúvida que a bomba era uma granada cegante e arrastei-me lentamente. Descobri que o chão tinha desabado com a explosão.

Meu amigo gritou: “seu olho direito está ferido!” Toquei meu olho e somente senti um monte de sangue na minha palma. Mas não sentia nenhuma dor. A explosão tinha arrebentando os caixilhos das janelas em pedacinhos e estilhaços devem ter penetrado minha sobrancelha. O sangue correndo tinha caído no meu olho e perdi a visão. Apoie-me no ombro do meu amigo para correr para a sala de enfermaria do escritório, cambaleando. Surpreendentemente, duzentas ou trezentas pessoas já estavam na fila. Quase todos tinham sofrido queimaduras. Mais tarde soube que muitas das pessoas na fila tinham morrido. Tive sorte no meu azar, pois não fiquei exposto diretamente à explosão. Todos os ferimentos eram na minha face. Todas as tentativas de parar com o sangramento falharam. O sangue continuar a fluir. Minhas roupas estavam de tal forma manchadas pelo sangue derramado que poderiam dar a impressão que estava gravemente ferido. Fui levado para a frente da fila e fizeram quatro pontos, depois de desinfetarem de forma rápida a ferida. Quanto sorte tive. Meus olhos estavam bem. Só quando minha sobrancelha foi cortada, a pele caiu e o sangue entrou no olho, causando uma cegueira temporária.

Foi dito que não havia maneiras de ajudar as vítimas de queimadura, só aplicar ungüento branco. Então fui colocado em uma tábua de madeira e deixado no chão de um prédio que estava inclinado pelo sopro da explosão. No meu peito estava uma etiqueta de papel em que estava escrito o meu nome, local de nascimento, idade e tipo sangüíneo. Ao meu redor estavam muitas vítimas de queimadura, gemendo de dor. As peles das pessoas vivas estava apodrecendo e soltando um cheiro intolerável. As pessoas estavam agonizando e morrendo lentamente, gemendo “ai, ai, água, água”. Fui deixado entre eles. Não sabia ao certo que horas eram, mas uma vez vi um céu azul sem nuvens, coberto por uma nuvem negra como carvão na direção de Koi e parecia que era uma chuva torrencial. Por volta das três da tarde, o ferry Enamimaru chegou para nos apanhar. Voltei aos meus alojamentos em Miyajima. Na manhã seguinte, o dia sete de agosto, as pessoas saudáveis foram para Hiroshima para limpar a cidade. Mas deixou-se que os feridos descansassem nos alojamentos.






O oito de agosto

Hoje, fui ao estaleiro em Eba, junto com alguns amigos meus. Meu rosto estava quase que totalmente embrulhado em bandagens, exceto o meu olho esquerdo. Então fui ao centro de Hiroshima. Como não haviam meios de transporte, tive que fazer toda a distância a pé. Primeiro visitei o Sr. Matsuoka, no distrito Minami Kan-non, onde estava me hospedando. Nada restava lá. Mandado pelos ares ou queimado, não sabia. Não havia nenhum traço. Naturalmente, minhas coisas, tais como cama, livros e outras coisas, não existiam. Não sabia se meu tio e minha tia Matsuoka tinham sobrevivido ou não. Mesmo hoje, não sei de seus destinos. Não tinha escolha, a não ser perambular até a escola em Higashisendamachi. Tanto quanto a vista alcançava, tudo estava totalmente incinerado em cinzas. Somente muros destruídos de concreto pontilhavam a paisagem. A esquerda e direita havia incontáveis corpos, ainda não removidos. Algumas pessoas olhavam os cadáveres, procurando seus parentes. Outros empilhavam a madeira meio queimada das casas, para incinerar os restos. Fiquei vagando pela cidade, cheia dos cheiros da morte.

Quando cheguei na ponte, soldados das tropas Akatsuiki estavam recuperando um imenso número de cadáveres do fundo do rio, usando barcos de desembarque. Todos os corpos estavam completamente nus. Alguns dos corpos permaneciam com as mão para cima, outros com as pernas torcidas em agonia. Estavam inchados pela água, branco-pálidos. A cena era muito lúgubre para lembrar, mesmo hoje em dia.

Finalmente cheguei na faculdade, passando pela ponte Takano. Todos os prédios de madeira da faculdade e os dormitórios estavam totalmente queimados, em ruínas. Somente a biblioteca na direita e a estrutura externa dos prédios do laboratório de ciências, nos fundos, foram poupados. Ao lado da entrada da frente, o corpo queimado de um cavalo fora deixado, soltando um fedor insuportável.

Percebendo que nada restara, fui até o endereço queimado dos Hasimotos, meus amigos, cujo marido tinha ido para a guerra e somente as mulheres tinham ficado para trás. Como os tinha ajudado a construir um abrigo de bombas subterrâneo e colocado coisas importantes lá, estame me preocupando com eles.

Fiquei mais calmo ao achar provas de coisas enterradas terem sido escavadas, pois isto era um sinal que meus amigos tinham sobrevivido. (Muitos anos atrás, fui a Hiroshima, mas lá não havia pistas para perguntar sobre o destino da família Hashimoto).

Então caminhei para Shiragamisha, pela avenida do bonde, para obter na praça municipal um certificado de flagelado. Não me preocupava de forma alguma com a minha cara miserável, embrulhada em bandagens, pois quase todas as pessoas estavam feridas e também perambulavam pelas ruas como zumbis em bandagens. Um bonde queimado, somente com a estrutura de aço restando, estava largado no meio da rua. Postes elétricos estavam inclinados e fios queimados balançavam dentro da janela.

Virei à esquerda no cruzamento do quarteirão Kamiya e caminhei pelos destroços do Pavilhão de Promoção Industrial da Prefeitura de Hiroshima (depois chamado de cúpula da Bomba Atômica), a ponte em forma de “T” de Aioi, Dobashi e o distrito de Fukushima. Continuei a caminhar em direção ao distrito Ibi.

Tão longe quanto a vista alcançava, toda a cidade estava queimada até as cinzas, pontilhada de muros de concreto que antes tinham sido prédios. Chapas de zinco queimadas soltavam rangidos nas janelas radioativas. Passei pelas ruínas e destroços, evitando os corpos dos mortos, cobertos com tapetes.

Finalmente cheguei na estação Ibi passando pela cidade morta, onde não havia sinais de uma só vida, cheia do cheiro dos cadáveres. Peguei um bonde em Miyajima e voltei para o hotel. Caminhei ao redor da cidade morta por oito dias, várias horas todos os dias. Como era bobo. Me arrependo de meu comportamento tolo de perambular. Nunca mais. Não desejo ver de novo tal inferno na terra. Não desejo mesmo me lembrar dele. Este é o limite do que posso descrever.

Deixem-me dizer uma última palavra: agora é um mundo pacífico. Vivemos em riqueza material e liberdade de palavra. As vezes acho estranho: porque estou vivo? Provavelmente posso estar “ficando vivo”. Só tenho um sentimento de gratidão, nenhuma reclamação ou insatisfação. Sempre agradeço a sociedade. Gostaria de dar alguma coisa de volta à sociedade.

Takeharu Terao

3 comentários:

  1. nosssaaaa que distancia tu tava da bomba?!?

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  2. Esses relatos são algo fantasticos,eu sei que realmente so quem presenciou tal fato,sabe como foi...porem ao ler,da para imaginar e sentir a agonia como foi...as bombas nucleares,foram algo deplorável do ser humano contra o seu próximo...

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  3. Foi um crime de guerra horrível. A quantidade de civis mortos e os danos da radiação são algo deploravel.

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