domingo, 13 de dezembro de 2009

Viagem na memória: o inferno de Auschwitz.





Em meados de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o jovem combatente da Resistência francesa Charles Gottlieb, então com 18 anos, foi detido e colocado em um trem rumo a um destino desconhecido. Ao desembarcar em seu paradeiro final, se viu diante de um portal que dava acesso a uma enorme área cercada de arame farpado, vigiada por guardas armados e povoada de farrapos humanos, a maioria vestida com uniformes listrados. A primeira frase que ouviu ressoa até hoje em sua memória: "Aqui você entra por esse portão e sai por aquela chaminé", disse seu interlocutor, apontando para a fumaça que saía ao longe do topo de uma torre de tijolos. Quem lhe deu as boas-vindas foi um dos prisioneiros do campo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. A fumaça a que se referia provinha de um dos fornos crematórios do complexo, um dos instrumentos da "solução final", o meticuloso plano de extermínio dos judeus arquitetado pelos nazistas.

O macabro campo hoje é uma extensa área deserta de ruidoso silêncio. Uma grama verde substitui o lodaçal de outrora. Das câmeras de gás, onde os detentos eram asfixiados pelo vapores do Zyklon B em uma morte lenta de até 20 minutos, pensando que se dirigiam para uma ducha, restam ruínas. Foi o último ato de destruição dos carrascos do Reich ao abandonarem o campo, para tentar esconder do mundo a sua barbárie. Passados mais de 60 anos, os visitantes de Auschwitz - 1,2 milhão só no ano passado -, ao retornarem por algumas horas a esse doloroso passado, são capazes de vislumbrar a tragédia no campo como se estivessem em um filme de terror. Mas, longe de ser uma ficção, Auschwitz é um real e infeliz capítulo da história da humanidade.

O sobrevivente Charles Gottlieb, hoje com 83 anos, é uma prova. Desde que um assistente do cineasta Steven Spielberg desembarcou em Nice, onde vive atualmente, para recolher seu depoimento para as pesquisas do filme A Lista de Schindler, decidiu usar o sofrimento do passado para alertar as consciências futuras. Estimulado também pelo crescimento na França das teses negacionistas em relação ao Holocausto, desde 2003 participa das "Viagens da Memória", excursões pedagógicas organizadas pelo Conselho Regional dos Alpes-Marítimos francês, em que centenas de alunos de escolas da região visitam o campo localizado nas cercanias de Cracóvia - 70 quilômetros a oeste. Só entre o último dezembro e março deste ano, estão previstas oito viagens, cada uma levando cerca de 150 adolescentes com idade em torno de 14 anos. Em dezembro passado, acompanhei uma dessas viagens ao passado do horror nazista, que neste 2009 voltará a ser lembrado pela data dos 120 anos do nascimento de Adolf Hitler (no 20 de abril de 1889, em Braunau am Inn, cidade austríaca a 60 quilômetros ao norte de Salzburg).

O jovem resistente Charles foi detido pela milícia francesa durante uma manifestação na praça Bellecour, no centro de Lyon, em julho de 1944. Interrogado por oficiais da Gestapo, sob as ordens do temível Klaus Barbie - conhecido como "o carniceiro de Lyon" por suas crueldades cometidas na luta contra a Resistência francesa e na perseguição aos judeus - foi torturado e em seguida deportado em um comboio para Auschwitz.

Seu testemunho pessoal, acrescido das informações dos guias locais, emociona os jovens estudantes, atentos ao seu relato. Ao desembarcar em Auschwitz, em agosto de 1944, Charles escapou da severa triagem da chegada, em que todos aqueles considerados inaptos para o trabalho eram enviados diretamente para as câmeras de gás, os pertences armazenados no bloco apelidado pelos prisioneiros de "Canadá", que para eles significava abundância e riqueza. Ele conta do onipresente e indigesto odor de carne queimada no campo. Arregaça a manga da camisa e mostra o número B9664 tatuado no braço, sua inscrição na chegada. Detalha o menu de magras rações diárias: um café "que era mais uma água suja" pela manhã, um sopa ao meio-dia e um pedaço de pão com um naco de gordura à noite. O escritor italiano Primo Levi (1919-1987), célebre sobrevivente de Auschwitz por seu livro "Se questo è un uomo" (Se isto é um homem - 1947), revelou ter lido um relatório nazista em que havia o cálculo de uma ração mínima de 1.600 calorias/dia para que um prisioneiro sobrevivesse de dois a três meses nas condições precárias do campo. "Era uma morte lenta por desnutrição", disse Levi em uma entrevista televisiva, em 1982. Charles Gottlieb acrescenta: "A única vez em que tivemos um sopa dupla foi quando Himmler (Heinrich Himmler, comandante das tropas especiais nazistas, as SS) visitou o campo com a Cruz Vermelha internacional".

A chamada dos detentos pela manhã, por volta das 4h, 4h30min, podia se estender por muitas horas de espera em pé, em temperaturas que chegavam a -20°C, até que a contagem de todos os nomes listados fosse completada. A demora era devida a ausência de muitos prisioneiros, mortos ou combalidos. O tempo mais longo de uma chamada de que se tem notícia em Auschwitz é de 19 horas. "Era terrível permanecer horas em pé no frio, vendo outros presos caírem e morrerem ali mesmo ao seu lado", conta.

No campo, não havia nenhuma amizade ou solidariedade entre os detentos, relembra Charles: "Era cada um por si. O que contava era permanecer vivo. Eu não tinha medo de morrer, me proibia de pensar nisso. Aqueles que perdiam o moral não duravam mais de uma semana. Mesmo um pai poderia roubar a comida do filho. Jamais vi uma cena de compaixão no campo. Aquilo nos transformou em verdadeiros animais, em bestas. Eu não tenho ódio dos alemães, mas ódio dos nazistas. Era algo inimaginável, uma vida no inferno". No caminho para o seu alojamento da época, o Bloco 14A, ele mostra o chão por onde hoje caminham os visitantes do campo: "Aqui mesmo, sob nossos pés, vi prisioneiros serem enterrados vivos".

Os detentos rumavam para o trabalho forçado ao som de uma orquestra, e Charles se lembra ainda das mulheres judias do "bordel" dos nazistas, no primeiro andar do bloco contíguo ao seu, que abanavam para os prisioneiros pela manhã. "Depois de 10 ou 15 dias, elas eram executadas e substituídas por outras", conta. Duas a três vezes por semana, no meio da madrugada, diz ele, os alemães fazerem uma inspeção nos dormitórios para "controle de pulgas". "Era tudo invenção para exterminar mais pessoas. Eles escolhiam alguns que diziam estar infectados, colocavam na parte traseira do caminhão, fechada, com o cano da descarga inserido no interior. Os prisioneiros morriam no caminho e os corpos era desovados diretamente nos fornos para incineração".

Muitos prisioneiros não suportavam o sofrimento diário e preferiam a morte imediata ao, em plena luz do dia e ao olhar de todos, simular uma fuga na tentativa de escalar as cercas do campo. "Tratava-se claramente de um gesto suicida, pois sabiam que seriam abatidos pelas certeiras balas dos numerosos e atentos guardas de vigia", diz.

Manon, uma das colegiais francesas do grupo, caminha perplexa pelo campo: "É impressionante, não esperava que fosse tão grande. Antes de vir, não achava que fosse sentir algo. É difícil acreditar que tudo isso possa ter existido e acontecido". Sua colega Marilou acrescenta: "Aqui sentimos algo diferente do que vemos nos livros ou na sala de aula".

No início de janeiro de 1945, com a aproximação do exército russo, os nazistas evacuaram o campo de concentração de Auschwitz, levando junto boa parte dos prisioneiros, no que ficou conhecido como as "marchas da morte". Milhares de prisioneiros morreram de fome e frio no caminho a outros campos ainda em atividade. Charles relembra que comia neve e urinava em suas próprias mãos para se esquentar. Levado para Mauthausen e depois Ebensee, foi mais tarde finalmente libertado pelas forças americanas.

Quando desembarcou em Auschwitz, Charles Gottlieb era um robusto jovem de quase 80 quilos. Seis meses depois, não passava de uma delgada silhueta de escassos 38 quilos. O período em que passou sem dentes no campo, hoje relembra com um humor negro: "Para a comida que nos serviam no campo não era preciso dentes". Os americanos ofereceram rações de carne em lata à vontade aos recém-libertados e ele diz que mais uma vez se salvou, pois muitos morreram por problemas de saúde provocados pela ânsia de saciar sua fome. "Um terço dos que foram recuperados comigo morreram por problemas decorrentes dessa comilança, visto o delicado estado de saúde em que nos encontrávamos".

Charles e sua futura mulher, Estelle, estavam juntos em Auschwitz, mas só foram se conhecer mais tarde, ao se inscreverem em um mesmo dia de 1946, após o final da guerra, na Federação Nacional dos Deportados e Internos Resistentes e Patriotas. Em 1948, por causa da crise econômica na época, foi obrigado a comprar farinha no mercado negro para fazer o pão para a modesta festa de casamento.

Entre 1,1 milhão e 1,5 milhão de pessoas deportadas para Auschwitz morreram no campo. Na França, na época, os pais de Charles ignoravam o paradeiro do filho e tampouco sabiam se estava vivo. O sobrevivente do inferno de Auschwitz recorda: "Nem eu mesmo sabia se estava vivo".


Creditos: Fernando Eichenberg.

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